Proteção específica para IA ganha força na área de Propriedade Intelectual

Proteção específica para IA ganha força na área de Propriedade Intelectual

Os avanços constantes dos sistemas de inteligência artificial (IA) desafiam a Propriedade Intelectual (PI). Não há consenso sobre a possibilidade de proteção de direitos autorais para obras feitas por IA, mas pedidos de patentes para criações dos robôs vêm sendo negados mundo afora. Com isso, surgiu entre os especialistas da área a ideia de uma modalidade específica de proteção voltada apenas à IA.

A chamada proteção sui generis (única em seu gênero) seria uma nova categoria, para além das formas de proteção mais conhecidas (direito autoral, patentes e marcas), com novos critérios e até prazos menores.

Essa modalidade abrangeria todas as questões e polêmicas de IA no campo de PI — ou seja, tudo o que hoje é discutido dentro das categorias atuais.

Por trás dessa iniciativa está a visão de que as formas de proteção hoje existentes podem não ser suficientes para a complexidade das inovações trazidas pela IA. E muitos especialistas reconhecem que as leis de PI precisam de adaptações para acomodar essas novidades.

IAs inventoras
Há, por exemplo, o debate sobre a possibilidade de uma inteligência artificial ser apontada como inventora em um pedido de patente. Essa controvérsia ganhou força em 2019, com o “caso Dabus”, no Reino Unido.

Dabus é o nome de um sistema de IA generativa. Naquele ano, o criador e proprietário do sistema tentou registrar em vários países patentes de duas invenções que, segundo ele, foram geradas de forma autônoma pela IA. O próprio Dabus foi indicado como inventor.

Os pedidos foram negados na esfera administrativa em países da Europa, nos Estados Unidos e no Brasil. Os escritórios de patentes consideraram que não houve nomeação de um inventor qualificado. Por isso, sequer avançaram para a fase de exame.

Nos lugares em que a discussão chegou ao Poder Judiciário, o entendimento foi semelhante. O exemplo mais emblemático ocorreu no próprio Reino Unido, cuja Suprema Corte analisou o caso em dezembro do último ano e negou a concessão das patentes.

Embora nem todas as decisões pelo mundo tenham conclusões e fundamentos idênticos (já que há diferenças entre as legislações dos países), elas estão, em linhas gerais, alinhadas.

O advogado Bruno Lopes Holfinger, sócio do escritório Dannemann Siemsen (especializado em PI) e agente da propriedade industrial, explica a tese central dessas decisões:

“O inventor precisa ser uma pessoa natural, capaz de ser sujeito de direitos, com personalidade jurídica”. Já a invenção “depende do esforço humano”.

Esse entendimento é baseado nas diretrizes atuais de PI. Mas, a partir da percepção de que esses parâmetros podem não ser os mais eficientes para lidar com a IA, uma corrente teórica propõe a criação da proteção sui generis.

Como as criações das IAs têm participação humana mínima, o novo modelo seria algo separado do regime aplicado às invenções do homem. O objetivo é proteger o trabalho dos profissionais que, em conjunto, desenvolvem sistemas de IA.

Como funcionaria
De acordo com Caroline Somesom Tauk, juíza federal do Rio de Janeiro que atua em uma vara especializada em PI, existem duas soluções para a questão das criações feitas por IA dentro dos parâmetros atuais.

Uma delas é admitir que uma máquina, como a IA, seja considerada autora dessas criações — tanto para invenções (novas tecnologias e processos) quanto para obras de arte (quadros e peças musicais, por exemplo).

Mas, como já ficou claro, essa tese não vem prevalecendo. A outra solução, hoje consolidada, é aceitar apenas seres humanos e impedir o registro de uma máquina como autora.

Nesse cenário, a proteção sui generis surge como uma terceira via, que envolve uma mudança na lógica atual de PI. Nesse caso, seria estabelecido que tais criações têm, sim, um autor.

A autoria poderia ser da própria IA ou dos programadores, treinadores, cientistas e fornecedores de dados que desenvolveram o sistema (ou seja, as pessoas por trás da máquina).

Essa nova modalidade teria um prazo mais curto de proteção. Hoje, as patentes, por exemplo, são protegidas por 20 anos. Como as IAs evoluem de forma muito rápida, a doutrina da proteção sui generis entende que um prazo tão longo tornaria as criações obsoletas.

Caroline Tauk, porém, ressalta que há um obstáculo para isso: os pactos internacionais de PI, dos quais o Brasil é signatário.

Um deles é o Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (Trips, na sigla em inglês), que estabelece o prazo mínimo de 20 anos para as patentes.

Já no caso do direito autoral, a Convenção de Berna estipula uma proteção mínima de 50 anos a partir da morte do autor.

Ou seja, para obter um tempo de proteção menor, seria necessário mudar a redação de acordos internacionais — o que é “mais complicado”, segundo a juíza.

Para acompanhar a dinâmica das IAs, a proteção sui generis também exigiria um exame mais rápido dos pedidos. A expectativa da doutrina é um procedimento com seis meses de duração.

E esse é um outro ponto sensível, não só no Brasil. Hoje, os órgãos oficiais de PI pelo mundo costumam demorar muito até concluir as avaliações e conceder as patentes.

Uma proposta para acelerar os processos é incentivar o uso de ferramentas de IA pelos próprios escritórios de PI.

Tarso Machado, sócio da banca Kasznar Leonardos (também especializada em PI), acredita que essa proteção não deveria passar pelo exame de um ser humano, pois “o racional da criação de uma obra por IA é muito diferente do racional do ser humano”. Além disso, a avaliação humana poderia causar lentidão no processo.

Possíveis caminhos
Bruno Holfinger entende que a criação de uma proteção sui generis precisaria passar por um intenso debate entre todos os envolvidos, o que incluiria os especialistas da área, o Legislativo, os desenvolvedores das IAs e a própria sociedade. Como a ideia ainda é muito inicial, ele diz que não há como prever maiores detalhes.

Tarso Machado, por sua vez, é contrário à criação de uma nova modalidade de proteção. Mesmo assim, ele entende que, caso ela venha a ser criada, haveria uma oportunidade para abordar melhor determinadas questões.

Uma delas é a responsabilidade legal. “Em casos de decisões autônomas prejudiciais feitas por IA, a nova modalidade poderia abordar questões de responsabilidade legal e ética, atreladas à titularidade da PI”, exemplifica.

Na visão de Machado, a proteção sui generis também poderia incluir “questões de registrabilidade condicionadas à origem dos dados de treinamento” de IAs generativas.

Por exemplo, quando uma IA usa dados de treinamentos de softwares para criar um novo programa, os detentores dos direitos do material utilizado como fonte poderiam ser considerados cotitulares da invenção (ou seja, dividiriam a titularidade com a IA).

Hoje em dia, criações autorais têm regras rígidas sobre a data de criação e depósito. Atualizações e modificações geralmente precisam ser protegidas por novas patentes. Para Machado, a nova modalidade poderia flexibilizar essa lógica.

Preparar a sociedade
“Se uma patente não puder proteger invenções de IA, invenções geradas autonomamente ou não por IA ou invenções assistidas por IA, essa ausência de proteção não poderia representar uma desmotivação a inovar? Ou a consequente redução da utilização da IA na indústria?”, questiona Holfinger.

A proteção sui generis, segundo ele, surge como uma tentativa de evitar essa situação e disponibilizar à sociedade as soluções desenvolvidas pela IA. “É de suma importância regular e legislar sobre IA, dada a sua velocidade evolutiva e as consequências (benéficas ou não) que ela pode trazer.”

No entendimento do advogado, o objetivo de criar essa nova modalidade de proteção é justamente preparar a sociedade para contemplar as mudanças rápidas e constantes das IAs. Há a preocupação de que seja perdida a proteção sobre muitos avanços porque o sistema de patentes não permite isso.

Essa nova modalidade não seria totalmente disruptiva, pois já existem outras formas de proteção, para além das mais conhecidas.

Um exemplo é a indicação geográfica, concedida para identificar a origem de um produto ou serviço que tenha certas qualidades graças à sua origem geográfica, ou que tenha nascido em um local conhecido por aquele produto ou serviço.

Da mesma forma, existe a opção pelo segredo de negócio: as fórmulas, os processos e os padrões são apenas mantidos em sigilo pelo proprietário.

Para Holfinger, “a ausência de formas de proteção para invenções provenientes de uma IA pode levar os desenvolvedores a procurar amparo no segredo de negócio”. Ele destaca que isso “é diametralmente oposto ao que se busca ao se proteger a propriedade industrial, que é o progresso da ciência e o desenvolvimento da sociedade”.

Caroline Tauk indica que as soluções para questões de IA dentro do sistema atual “acabam não satisfazendo todos os interesses”.

Ela lembra que as leis de PI foram concebidas nos anos 1990, quando máquinas ainda não eram capazes de criar. Por isso, considera que “essas leis precisam ser atualizadas”.

Mas a juíza ressalta que alterações legislativas envolvem processos políticos nos quais são feitas concessões para se obter aprovação. Assim, nem sempre resultam na melhor solução.

Além disso, mesmo novas mudanças poderiam ficar desatualizadas em pouco tempo, devido ao ritmo de evolução da tecnologia.

Sem unanimidade
Machado concorda que as leis de PI têm dificuldade para acompanhar a dinâmica da IA, mas não vê a proteção sui generis como o melhor caminho para essas criações.

Segundo o advogado, a sociedade precisa decidir se realmente deseja que exista uma proteção para as criações das IAs generativas.

Em caso positivo, ele entende que “não seria necessária a criação de outras formas de proteção”. Em vez disso, “as leis dos países poderiam ser alteradas para permitir que uma IA generativa seja considerada inventora de uma patente ou autora de uma criação autoral”.

Caso a sociedade entenda que as criações de uma IA não devem ser propriedades de um indivíduo ou de um grupo, também não haveria necessidade de uma nova forma de proteção, “visto que os principais sistemas legais já proíbem que as criações de IA generativa possuam direitos autorais ou que seja concedida uma patente para algo inventado unicamente por uma IA”.

Machado compreende que a ideia de uma proteção sui generis teria a vantagem de “proporcionar uma abordagem mais específica e adaptada aos desafios únicos apresentados pela IA, o que pode incentivar a inovação ao garantir uma proteção adequada para os criadores de IA”.

Por outro lado, ele considera que “a criação de uma nova forma de proteção pode complicar ainda mais o sistema legal, tornando-o mais complexo e difícil de administrar”.

Dentro do sistema atual, Machado ressalta a importância de medidas para garantir que a IA não viole direitos de terceiros, como supervisionar o processo de treinamento da máquina e filtrar informações protegidas por direitos autorais.

“Para esses assuntos de infração de PI, a criação de uma proteção sui generis, por si só, não seria capaz de endereçar tais questões.”

Apesar da opinião desfavorável, o advogado não enxerga antagonismo entre IA e PI. Ele lembra que as IAs são utilizadas por empresas inovadoras em suas cadeias de produção e pelo próprio Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) nos seus processos internos (para buscar e classificar patentes, por exemplo).

Confira também: Violação de propriedade intelectual

Fonte: Conjur


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