Reviravoltas na intributabilidade dos Contratos de Franquia

Reviravoltas na intributabilidade dos Contratos de Franquia

Por Marcelo Nogueira Mallen da Silva[1]

Com o lançamento de nova tese fixada de que: “[é] constitucional a incidência de Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS) sobre contratos de franquia (franchising) (itens 10.04 e 17.08 da lista de serviços prevista no Anexo da Lei Complementar 116/2003”, no tema 300 da repercussão geral, o Supremo Tribunal Federal (STF) ao apreciar o RE 603.136/RJ[1] [2], exauriu a atividade interpretativa quanto ao núcleo de incidência e higidez do imposto.

Para fins fiscais, segundo o Supremo “[o] “sistema” de franquia envolve muito mais do que apenas uma cessão de marca, envolve diversas formas de prestação de diferentes serviços. Daí a incidência de ISS, como prevê a lei complementar”. Independeria, portanto, a separação das prestações abarcadas nessa modalidade mercantil — “atividade-fim”, tais como a cessão do uso de marca, e “atividade-meio”, o treinamento, a orientação, a publicidade etc.

A premissa gravita em torno de umas e outras atividades que moldam o contrato de franquia, reunidas em um só negócio jurídico e assim considerado como uma unidade; um plexo indissociável de obrigações contrapostas que inclui diferentes atividades.

O contrato de franquia é de natureza híbrida, complexa, mista, e não de simples prestação de serviço, devendo ser encarado pelo mundo jurídico como um todo, e não desmembrado, em todas as suas modalidades, para que, em parte dele, incida a tributação. Conceito constitucional de serviço tributável que abrangeria somente as obrigações de fazer, negociação para a entrega de uma franquia ao franqueado por parte do franqueador encerrando uma obrigação de dar o direito à utilização de determinada marca registrada, de sua tecnologia ou de franquear o sucesso mediante um pagamento.

Disso deflui que a natureza atípica do contrato de franquia envolve: “(…) pois, obrigação de dar, e não de fazer, esta típica da prestação de serviços. Os de suporte e assistência técnica eventualmente coexistentes na franquia, a traduzir obrigação de meio, não descaracterizam a sua essencial e principal natureza jurídica, que é a obrigação de dar” [3].

De acordo com o STF não haveria razão para tratamento desigual à atividade-meio e à atividade-fim suficientemente justificável a preservar os custos individuais das diversas prestações para reduzir a carga fiscal sujeita ao contrato. Estando a aludida exação (exigência) compatível com a Constituição Federal (arts. 154, inc. I, e 156, inc. III), em respeito às múltiplas incumbências a cargo do Estado — pode-se dizer a tributação, que consiste, singelamente, na atividade estatal abrangente da instituição, arrecadação e fiscalização de tributos.

O desfecho da controvérsia deixou de lado outros precedentes acerca da matéria que defendiam a inexistência do fato gerador decorrente das receitas obtidas com os contratos de franquia[4], que subsidiariam a linha de defesa adotada pela empresa autuada figurando na lide como sujeito passivo (não substituto) para efeitos tributários reconhecendo possuir o vocábulo “serviços” sentido revelador de obrigação de fazer.

A referência ampla e a lógica por trás deste julgamento deveria levar em conta o conjunto de atos praticados para extrair a essencialidade da prestação; ênfase dada nas palavras do segundo voto proferido nos autos da lavra do exmo. Ministro Marco Aurélio: “É dizer: se, de um lado, o negócio entabulado revelar, em essência, obrigação de dar, há de excluir-se a atividade do campo de incidência tributária, por não preencher a operação os elementos do tipo serviço. Se, de outro, existente, no núcleo da prestação, um fazer, surge caracterizado serviço, a viabilizar a cobrança de ISS”.

Afinal, não se poderia destacar este ou aquele elemento como sendo preponderante ou essencial, aproveitando-se o conjunto para utilidade da matriz de incidência do imposto; desafiando o Supremo a declarar o campo de competência reservado aos municípios para a tributação de serviços.

Em face da histórica dificuldade jurisprudencial na caracterização de ser ou não devido o tributo (aqui, o imposto sobre serviços de qualquer natureza), observa-se que o choque inicial absorvido a partir da leitura do primeiro voto (condutor) da lavra do exmo. Ministro Relator Gilmar Mendes movimentará longas discussões sem imediata pacificação. Situação refletida na balança dos bens jurídicos mais caros (fundamentais) e o figurino constitucional de presunção de exigibilidade, legalidade e validade do então denominado crédito tributário que se avizinha.

Dos trechos já adiantados acima, percebe-se ser indicativo à decisão inquinada que certamente ostenta tentadora preocupação na especialíssima estrutura negocial da alocação de riscos, apesar de provocar redobrada atenção fruto de uma série de relações jurídicas internas entre franqueador e o franqueado por compreender diferentes contornos com as mais diversas cláusulas ao alvedrio dos contratantes, talvez preveja a ressignificação dos rotineiros protocolos de intenção e contextos obrigacionais a partir do indigitado paradigma, tudo além das hodiernas adaptações feitas nesse tipo de contrato mais eclético de prestações recíprocas e sucessivas (diga-se per se nada convencional), ainda mais após o surgimento da Lei n° 13.966, de 26 de dezembro de 2019, que dispõe sobre o sistema de franquia empresarial e revogou a Lei n° 8.955, de 15 de dezembro de 1994 (Lei de Franquia).

[1] Advogado. Agente da Propriedade Industrial. Pós-graduado em Direito Empresarial e dos Negócios (UCAM). Especialista em Direito Digital (FGV). Membro da Comissão de Propriedade Intelectual da Ordem dos Advogados do Brasil no Distrito Federal (OAB-DF). Membro da Associação Brasileira da Propriedade Intelectual (ABPI). Membro da Young Arbitration Group na The London Court of International Arbitration (LCIA).

[1] A notícia-base foi veiculada com alguns dados dos envolvidos neste leading case no portal do STF: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=444588>. Disponível em: 28 mai. 2020.

[2] O Recurso Extraordinário previsto para análise teve seu julgamento em sessão plenária virtual publicada em 16 jun. 2020 — decidido por unanimidade cujo desfecho foi o desprovimento dos argumentos do sujeito passivo tributário (contribuinte recorrente).

[3] O texto encartado entre aspas foi originalmente apresentado pela Associação Brasileira de Franquias Postais (ABRAPOST) na condição de amicus curiae no bojo do presente RE 603.136/RJ, de importância elucidativa no cerne das peculiaridades que circundam o contrato de franquia, repercutindo em outra ação, essa de Incidente de Inconstitucionalidade nº 994.06.045400-3, tramitada perante o Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

[4] Entendimentos firmados sobre a inconstitucionalidade do ISS: AI 469296 (DJe 16/08/2005), AI 730737 (DJe 01/04/2009), AI 730737 AgR (DJe 29/06/2009), ARE 1094215 (DJe 06/12/2017), ARE 1184969 (DJe 02/04/2019), ARE 1111315 (DJe 19/08/2019).


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