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Por Jéssica de B. Souza Tebar – Sócia fundadora do escritório Tebar Advogados.
Se usada adequadamente, a tecnologia Blockchain pode ser uma ferramenta inovadora na proteção de direitos, especialmente na área de Propriedade Intelectual
A tecnologia Blockchain se tornou popular nos últimos anos por sua aplicação no ramo das criptomoedas, especialmente nas transações envolvendo o Bitcoin. Apesar da fama com as criptomoedas, diversas outras áreas discutem a possibilidade e os reflexos da aplicação dessa tecnologia.
No Direito, uma das grandes questões é entender se o emprego da tecnologia Blockchain é juridicamente válido para prática de atos variados, tais como constituição de obrigações e produção de provas.
E especificamente no ramo da Propriedade Intelectual, a principal questão é entender se há possibilidade e validade no uso de Blockchain para registro ou proteção de ativos e de criações intelectuais.
Em poucas palavras: o que é Blockchain?
A tradução da expressão “Blockchain” é “cadeia de blocos”, a ser entendida como uma “sequência de blocos”. Essa tradução possui relação direta com o seu funcionamento, pois trata-se de uma tecnologia que, basicamente, armazena informações de forma sucessiva e permanente em uma sequência (cadeia) de pequenos “blocos” criptografados.
Essa cadeia se torna um registro eletrônico que garante o armazenamento das informações de forma segura, permanente e imutável. A descentralização em blocos dificulta muito a interceptação das mensagens por terceiros, por exemplo, garantindo a segurança mesmo contra possível tentativa de acesso por hackers.
A aplicação do Blockchain e sua validade no ramo jurídico
A tecnologia Blockchain pode ser utilizada para várias finalidades, e aplicada em diversos aspectos e áreas relacionados ao Direito. Uma das principais vantagens no ramo jurídico é a de oferecer um registro permanente, imutável e seguro de informações, o que incentiva o uso dessa tecnologia para produção de provas destinadas a uso judicial ou extrajudicial.
Mas ainda existe um grande receio de que provas produzidas a partir de Blockchain não sejam aceitas por Tribunais, órgãos públicos ou terceiros, por se tratar de um meio relativamente novo e não regulamentado no país.
Esse receio, contudo, deve ser deixado de lado. Apesar de não ser regulamentada, a tecnologia possui espaço na legislação para ser aceita como meio hábil de certificação de informações e documentos.
Em 2019, o Tribunal de Justiça de São Paulo proferiu decisão em um caso que não trata diretamente sobre Blockchain, mas que indiretamente abordou a questão do uso dessa tecnologia como um meio de prova. Na decisão, ficou indicado que seria válida “a preservação do conteúdo” viaBlockchain, feita pelo Autor, para utilização como prova.
Apesar de a questão central não ser sobre o uso da tecnologia, essa decisão foi a primeira conhecida no país a admitir a validade de provas armazenadas especificamente em uma solução Blockchain. E isso confirma uma correta interpretação da legislação brasileira, que prevê que é possível o uso de todo e qualquer meio legal e legítimo para a produção de provas (artigo 369 do Código de Processo Civil).
Não por acaso, empresas no Brasil já utilizam e oferecem soluções em Blockchain, e no mundo inteiro a tecnologia vem sendo cada vez mais explorada e utilizada em diversos ramos de atividades, não apenas no Direito.
No início deste ano, a Forbes divulgou lista das 50 maiores empresas ao redor do mundo que adotam Blockchain para acelerar processos de negócios, aumentar a transparência e economizar. A lista traz nomes famosos como BMW, que utiliza a tecnologia na Europa, México e Estados Unidos para rastrear materiais, componentes e partes por toda a cadeia de produção, e também como a LVMH, grupo titular da marca Louis Vuitton, que está usando a tecnologia para rastreabilidade e prova de autenticidade de seus produtos de luxo.
No Brasil, a Original My é um exemplo de empresa em destaque no mercado por oferecer serviços em Blockchain. Dentre os produtos que a empresa fornece com tecnologia Blockchain, estão soluções que podem ser usadas para as mais diversas finalidades, incluindo para produção de provas em disputas judiciais e assinatura de contratos de forma eletrônica.
Apesar de se tratar de um assunto relativamente novo, sem regulamentação e ainda não maduro na esfera jurídica, a conclusão é de que a tecnologia Blockchain pode sim ser utilizada na certificação de documentos e informações, e na produção de provas, devendo ser reconhecido como meio de prova válido pela Justiça.
No entanto, o seu uso na área da Propriedade Intelectual, particularmente, deve ser avaliado com mais cautela.
O uso do Blockchain para proteção de direitos de Propriedade Intelectual
Ao buscar proteção para trabalhos ou criações intelectuais, a legislação exige o cumprimento de diversos requisitos que variam de acordo com a criação a ser protegida.
Para obter os devidos direitos sobre uma marca, por exemplo, é necessário efetuar o registro junto ao Instituto Nacional da Propriedade Industrial (“INPI”), conforme Lei da Propriedade Industrial (Lei nº 9.279/1996, artigo 129). De nada (ou pouco) vale o fato de a marca já estar sendo utilizada ou haver comprovação de que foi criada há muito tempo.
Assim, na prática não funcionaria o “registro” de uma marca em um sistema de tecnologia Blockchain com a simples finalidade de garantir os direitos sobre ela, pois a lei é clara ao estabelecer que a propriedade da marca somente é adquirida mediante registro expedido pelo INPI.
Porém, em muitas disputas envolvendo marcas é importante apresentar evidências que comprovem o uso da marca no passado, por exemplo. E os meios de prova mais utilizados hoje, que são as capturas de tela (prints) ou Atas Notariais, apresentam falhas ou desvantagens. A veracidade de prints, por exemplo, é regularmente questionada, uma vez que é muito fácil fraudar imagens desse tipo. As Atas Notariais, por sua vez, apresentam um custo muito alto para sua confecção, especialmente quando é necessário atestar muitas informações.
Em disputas como essas, portanto, o uso da tecnologia Blockchain para certificar o uso da marca ao longo do tempo pode ser benéfico.
No campo de direitos autorais, por sua vez, a proteção ocorre independentemente de qualquer registro da obra criada perante um determinado órgão. A obra pode ser registrada, se o autor quiser. Mas, para obter direitos sobre qualquer obra, como um texto ou uma pintura (obra de arte), por exemplo, o seu autor não precisa publicar ou registrar sua criação de qualquer maneira, conforme artigo 18 da Lei nº 9.610/1998. Basta que a obra seja expressa por qualquer meio ou fixada em qualquer suporte (artigo 7º).
Raciocínio similar é aplicável aos softwares, que recebem o mesmo regime de proteção dos direitos autorais (artigo 2º da Lei 9.609/1998).
Por isso, apesar de não haver necessidade de registro de direito autoral ou softwares, é extremamente importante que seja possível comprovar a data de criação da obra e o seu conteúdo de forma segura, ágil e sem possibilidade de fraude.
A tecnologia Blockchain, assim, apresenta um bom potencial de aplicação nesse campo. Isso porque, as formas de registro de direitos de autor hoje oferecidas pelos órgãos públicos ainda são burocráticas, podem gerar grande custo aos autores ou até mesmo permitir acesso indevido por terceiros em razão de fraca segurança tecnológica no armazenamento das informações sobre o registro.
Além disso, o Blockchain possibilita a identificação permanente e imutável de toda a cadeia de produção, permitindo o rastreio de todos os possíveis coautores e pessoas envolvidas na criação da obra.
Assim, a conclusão é de que a tecnologia Blockchain é útil na área de Propriedade Intelectual, fornecendo uma ampla gama de opções para proteção dos direitos envolvidos. Porém, ela não se sobressai àqueles casos em que a Lei exige que o registro de seja feito de maneira específica, como o registro de marcas perante o INPI.
Mas se há tantas vantagens, por que o Blockchain ainda não é fortemente utilizado no Direito e na área de Propriedade Intelectual?
Como visto, o Blockchain se mostra uma tecnologia altamente promissora no ramo jurídico, em especial na área da Propriedade Intelectual. Mas, mesmo assim, o Blockchain ainda vem ganhando espaço de forma gradual e não muito acelerada.
No Brasil, isso se deve principalmente ao fato de se tratar de tecnologia não regulamentada. A ausência de um “carimbo” do Governo fragiliza a visão do Blockchain perante o mercado nacional. Outro fato que desacelera a utilização da tecnologia é a dificuldade de plena compreensão sobre a técnica por trás do Blockchain. Salvo especialistas e aqueles mais curiosos, a grande massa da população desconhece o funcionamento do Blockchain.
Acrescenta-se, ainda, o fato de que a tecnologia e sua utilização para produção de provas e documentos ainda não foi exaustivamente “testada” perante os Tribunais, gerando receio (ainda que indevido) com relação à sua segurança jurídica.
Estes são os principais elementos que inibem uma entrada mais efetiva do Blockchain no Direito e na área de Propriedade Intelectual.
Um futuro promissor pela frente
Como abordado, o Blockchain deve sim ser considerado um meio válido para produção e certificação de provas no Brasil, e também para permitir a proteção e registro de determinados direitos na área da Propriedade Intelectual, ainda que sua aplicação nessa área deva observar as disposições legais hoje em vigor.
Em nossa visão, reconhecendo a validade e importância do Blockchain – talvez a tecnologia mais apostada para o futuro -, é preciso um esforço conjunto de Governo, operadores do Direito e especialistas no sentido de combater as lacunas que desaceleram o crescimento da tecnologia no país.
O Brasil é um país com avanço tecnológico e digital relevante e precisa desse esforço conjunto para impulsionar o Blockchain em seu território, no Direito e dentro da área de Propriedade Intelectual.