- Marca
Por Paulo Armado – Sócio da Daniel Advogados e Eduardo Riess – Advogado da Daniel Advogados
A Relevância do Interesse do Titular de Registro que não se Opõe a Pedidos de Terceiros
A busca pela proteção de marcas, por meio de registro no INPI, muitas vezes é levada à apreciação do Poder Judiciário, que detém competência para rever os atos da autarquia nos casos em que o depositante reputar como indevida a decisão que indefere o seu pedido de registro. Ocorre que, com alguma frequência, a decisão de indeferimento é fundamentada na potencial colisão com direitos já adquiridos por terceiros (sobre marcas supostamente idênticas ou semelhantes), o que levanta discussões sobre o papel e a posição do titular do direito anterior em eventual ação de nulidade da decisão indeferitória.
Quem atua na área de propriedade industrial – mais especificamente na seara marcária – sabe que é comum que determinados pedidos de marca depositados perante o Instituto Nacional da Propriedade Industrial – INPI sejam indeferidos com base no inciso XIX do art. 124 da Lei n. 9.279/96 (Lei de Propriedade Industrial – LPI), sob o fundamento de haver risco de confusão ou associação indevida com outra marca já registrada dentro daquele mesmo segmento mercadológico (ou de mercados afins).
Contudo, é constitucionalmente assegurado ao depositante do pedido indeferido a possibilidade de ingressar com uma ação de nulidade na esfera federal, cabendo ao Poder Judiciário a função de analisar se o ato administrativo de indeferimento seguiu, ou não, em consonância aos parâmetros constitucionais, legais e infralegais aplicáveis. Isto porque, em alguns desses casos, existem certas peculiaridades de mercado que podem passar despercebidas ao crivo analítico da entidade autárquica, o que é algo compreensível, considerando sua natureza jurídica e, claro, a saliência vinculativa – e não discricionária – de seus atos.[1] Em ações dessa natureza, os efeitos advindos de uma sentença meritória podem recair não apenas sobre as esferas jurídicas do titular do pedido indeferido e do INPI, cuja presença é obrigatória por analogia aos termos do art. 175 da LPI, mas também possivelmente sobre a esfera do titular do registro anterior apontado como obstativo, que, em caso de eventual procedência da demanda, passará a conviver com um signo marcário potencialmente adjacente à sua marca.
Observa-se, todavia, que a despeito de se tratar de um interesse jurídico eventual (i.e., uma possibilidade, não uma certeza), os tribunais pátrios vinham adotando um entendimento rígido de que em tais ações de nulidade o titular do registro tido como impeditivo deveria obrigatoriamente figurar – enquanto litisconsorte necessário – no polo passivo da demanda, à luz do que estabelecem os artigos 114, 115 e 116 do Código de Processo Civil.
Esse entendimento foi recentemente refletido, inclusive, no Enunciado nº 111 da III Jornada de Direito Comercial do Conselho da Justiça Federal, evento ocorrido em junho de 2019, que dispôs que “Nas ações de nulidade de indeferimento de pedido de registro de marca, o titular do registro marcário apontado como anterioridade impeditiva é litisconsorte passivo necessário, à luz do que dispõe o art. 115 do CPC”.
Ao tratar da situação, a conclusão enunciativa acima valeu-se do pressuposto de que o interesse desse titular estaria sempre presente nessas demandas e que, por esse motivo, sob a convicção de que a tutela jurisdicional pretendida nesses casos seguramente possuiria o condão de lhe afetar (negativa ou positivamente) em termos jurídicos, seria necessário assegurar-lhe o direito de também defender o ato praticado pelo INPI.
Porém, também recentemente, o Poder Judiciário Federal vem flexibilizando esse entendimento em algumas situações de exceção, como, por exemplo, nos casos em que o titular (do registro marcário obstativo) não se opõe ao pedido de registro na esfera administrativa ou, ainda, expressa e previamente consente com eventual coexistência marcária. Assim, ao invés de se determinar sua citação, passou-se a optar pela via da intimação desse titular para que, em caso de eventual interesse, pudesse ingressar na lide.
Do ponto de vista processual, trata-se este de um entendimento judicioso, afinal, a existência ou não do interesse de agir do réu está relacionada à demanda judicial em concreto[1], cuja análise é casuística e, na hipótese aqui tratada, portanto, deve naturalmente ponderar tais consentimentos e acordos de coexistência marcária entre o autor e o titular do registro citado como impeditivo pelo INPI.
Mesmo porque, esses acordos são frutos de uma série de estudos e análises concorrenciais realizadas previamente pelos agentes, de que se extrai que ignorar ou pormenorizar sua relevância não apenas representaria um afrontamento ao princípio da autonomia de suas vontades[2], como efetivamente contrastaria com um dos nortes principiológicos estabelecidos por nosso diploma processual civil, o da autocomposição, que, inclusive, deve ser sempre estimulada pelo magistrados, nos termos do artigos 3º, §3º, e 139, V, do CPC.
Vale dizer, com relação aos acordos de coexistência de marcas, que apesar destes não exercerem qualquer força vinculativa no âmbito do direito material, seja no INPI ou na esfera judicial, para fins processuais eles constituem verdadeiras manifestações prévias e expressas da vontade do titular do registro anterior, que acaba por externalizar a inexistência de seu interesse em obstar a pretensão processual do Autor de reformar o ato de indeferimento do INPI.
Ademais, ao deixar de se determinar obrigatoriamente a citação deste titular que, de forma prévia e expressa, não se opõe ao direito do autor da ação de nulidade (medida que era, inclusive, questionável à luz da teoria da causalidade[1]), passou-se a evitar que sobre o processo incorressem uma série de prejuízos desnecessários, mormente em termos de celeridade e economia processual, garantindo-se assim maior efetividade à tutela jurisdicional ali pleiteada.
Não se pode ignorar, por exemplo, que o mero ato de citação per se já é uma medida burocrática e muitas das vezes de dificultosa concretização, a depender da natureza, localidade e outras particularidades do agente. Ocorre que em tais ações de nulidade, não obstante todas essas dificuldades, uma vez citado, o titular do registro marcário impeditivo ainda possui o prazo de 30 dias úteis para apresentar sua contestação[2], isto é, o dobro do período quinzenal regularmente estabelecido pelo art. 335 do CPC.
E não é só, afinal, a citação, que é o ato de comunicação convocatório do Réu a integrar o processo, surte importantes efeitos processuais e materiais, o que requer, via de regra, meios oficiais para perfectibilizar-se, como, por exemplo, o uso de correio ou oficial de justiça, sendo a via eletrônica menos frequente. Isto porque, sendo a citação pressuposto de validade do processo[3], eventual dúvida sobre a sua existência ou qualquer potencial vício enseja nulidade dos atos decisórios subsequentes, prejudicando-se a marcha processual e até mesmo os interesses das partes.[4] Não obstante, o grande problema da citação por meio eletrônico (que notadamente é mais célere) é a necessidade de que as partes façam e mantenham cadastro no sistema do Tribunal em que tramita o processo[5], o que não é a realidade para grande parte dos titulares de registros anteriores, muitas das vezes empreendimentos de pequeno e médio porte[6]. Esse cenário impede que o Autor da ação de nulidade se beneficie dessa modalidade, obrigando-o a recorrer a incessantes buscas pelos endereços desses empreendimentos (alguns dos quais não oficialmente declarados), atrasando-se de sobremaneira a marcha processual.
Por outro lado, a intimação é mero ato de comunicação que dá ciência às partes, aos interessados e aos patronos, acerca de atos processuais, despachos e decisões (art. 269, do CPC), tendo a Lei e os Tribunais permitido sua concretização, em via de regra, por mecanismos eletrônicos e até mesmo por mecanismos mais informais, adequando-se a situações extremas como, por exemplo, pandemia e desastres naturais, possibilitando-se o impulsionamento do processo já iniciado[1].
Ou seja, o entendimento abrangente anteriormente adotado, de que todo titular de registro obstativo – mesmo os que expressamente consentiram com o novo signo – deveria ser necessariamente citado (ao invés de intimado), não apenas lhe impunha o dispêndio de tempo e gastos com advogados acerca de um objeto por ele não resistido, como também desnecessariamente obstaculizava o próprio acesso à justiça do demandante.
Por outro lado, a solução que vem sendo aplicada mais recentemente harmoniza os preceitos legais e doutrinários ao oportunizar que o titular do registro obstativo se manifeste tão somente para informar, nos autos do processo, se as condições daquele consentimento para a convivência marcária permanecem inalteradas, sendo considerada sua eventual inércia como um desinteresse em participar do processo.
Neste sentido, a exemplo do que vem sendo feito pela Justiça Federal, determinar a intimação do titular consentidor (em detrimento de sua citação) é uma medida salomônica, mesmo porque, não obstante desobrigá-lo de figurar no polo passivo de uma demanda cujo provimento jurisdicional não o afeta juridicamente, preserva-lhe, ainda, o direito de eventualmente ingressar ao feito na condição de réu, caso o agente econômico reveja seu posicionamento acerca do signo marcário sub judice.
Com efeito, a postura que passou a adotar a Justiça Federal, nessas situações excepcionais, convolou o titular do registro impeditivo à condição de terceiro interessado, de modo que sua intimação pode ser expedida sem maiores formalidades, inclusive por meios eletrônicos (aqui em sentido amplo como, por exemplo, simples e-mail a endereço eletrônico do titular), para que, caso queira, ele ingresse na demanda assistindo o INPI (como seu assistente litisconsorcial, na forma do art. 124, do CPC)[2], o que, não obstante, poderá ainda ser impugnado incidentalmente pelo Autor da demanda (art. 120, do CPC).
Deve ser ressalvado, ainda, que em alguns casos extravagantes, tal admissão do titular do registro obstativo ocorre na forma de assistência simples[1], quando não vislumbrado um vínculo de titularidade deste com a relação jurídica discutida, mas tão somente mero e eventual interesse no resultado.
No entanto, mesmo nessas raras hipóteses, é importantíssima que sua intimação se dê na fase inicial do processo, possibilitando-lhe assim a manifestação em qualquer estágio da demanda (art. 119, parágrafo primeiro, do CPC), justamente para que haja a chamada “eficácia da intervenção”, o que permite a ele atingir os efeitos preclusivos da coisa julgada e, consequentemente, impedir-lhe de rediscutir a justiça da decisão em outra ação a posteriori (art. 123, do CPC)[2].
Portanto, conclui-se que, pela ótica processual, a medida de intimar o titular do registro anterior que expressa e previamente não se opõe à eventual coexistência marcária, em detrimento de sua citação, veio a aprimorar as ações de nulidade de atos do INPI que culminam no indeferimento de pedidos de registro de marca. Trata-se de uma medida simples que não só agiliza o processo, mas, ao fazê-lo, preserva todas as garantias e direitos das partes envolvidas e possivelmente interessadas, evitando eivas procedimentais capazes de ensejar futura nulidade da sentença que decidir seu mérito.
[1] Conforme disposto no artigo 2º, primeira parte, da Lei nº 5.648, de 11 de dezembro de 1970 (“O INPI tem por finalidade principal executar, no âmbito nacional, as normas que regulam a propriedade industrial, tendo em vista a sua função social, econômica, jurídica e técnica”) e corroborado quando do julgamento do REsp nº 1.162.281, exarado pela Terceira Turma do STJ, com voto de lavra da Min. Rel. Nancy Andrighi, j. em 19.02.2013.
[2] DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. Salvador: JusPodivm, 2019. v.1. p. 422.
[3] Consagrado nos artigos 1º, inciso IV, 5º, inciso II e 170, caput, da Constituição Federal de 1988.
[4] A Teoria da Causalidade “determina a imposição da verba honorária à parte que deu causa à instauração do processo ou ao incidente processual.” (STJ, Segunda Turma, AgInt no AREsp 1520666 / PE, Min. Rel. Herman Benjamin, j. em 19.11.2019).
[5] Vide art. 2º, §2º, da Portaria JFRJ-POR-2018/00285, de 20 de setembro de 2018.
[6] HARTMANN, Rodolfo Kronemberg. Novo Código de Processo Civil. 2ª ed. Impetus: Niterói, 2016. p. 279.
[7] NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. 9. ed. Salvador: JusPodivm, 2017. p. 630.
[8] HARTMANN, Rodolfo Kronemberg. Op. Cit. p. 281.
[9] Inclusive porque as microempresas e empresas de pequeno porte foram expressamente dispensadas, à égide do art. 246, §1º, do CPC, da criação e manutenção do referido cadastro.
[10] Intimações por telefone e mensagens eletrônicas foram regulamentadas em vários Tribunais, tendo suas validades reconhecidas com base no artigo 154 do CPC/73, cujo texto foi reproduzido no artigo 188 do CPC/2015: “Os atos e os termos processuais independem de forma determinada, salvo quando a lei expressamente a exigir, considerando-se válidos os que, realizados de outro modo, lhe preencham a finalidade essencial.”
[11] Vide a aplicação dessa metodologia, por exemplo, nos processos de rito comum de nºs 5009656-91.2018.4.02.5101, 5063511-48.2019.4.02.5101 e 5031266-47.2020.4.02.5101, em trâmite perante a 25ª Vara Federal da Subseção Judiciária do Rio de Janeiro; 5047953-36.2019.4.02.5101 em trâmite perante a 31ª Vara Federal da Subseção Judiciária do Rio de Janeiro; e 5035649-68.2020.4.02.5101 e 5035689-50.2020.4.02.5101 em trâmite perante a 9ª Vara Federal da Subseção Judiciária do Rio de Janeiro.
[12] TRF/2ª Região, Primeira Turma Especializada, AC nº 0044349-94.2015.4.02.5101, Rel. Gustavo Arruda Macedo, j. em 28.09.2018.
[13] CÂMARA, Alexandre Freitas. O Novo Processo Civil Brasileiro. 2.ed. São Paulo: Atlas, 2016. p. 88.