Por Bruno Alves – Especialista de Patente da Daniel Advogados e Rafael Gomes Rocha – Assistente de Patente da Daniel Advogados
Nas últimas décadas, especialmente a partir dos anos 90, experienciamos uma expansão dos computadores pessoais no Brasil. É nesse contexto que entra em vigor, em 1996, a Lei da Propriedade Industrial (Lei 9.279/1996), que rege, dentre outras questões, as diretrizes gerais para o sistema de patentes brasileiro.
De forma breve, uma patente é um título concedido pelo Estado ao criador de uma invenção nova e dotada de inventividade, que garante o direito temporário de impedir que terceiros, sem a sua autorização, explorem de alguma forma a sua invenção. A existência deste tipo de proteção busca especialmente fomentar o desenvolvimento tecnológico, através de um incentivo ao inventor por meio da concessão de um direito de exclusividade que a ele permite a obtenção de maiores ganhos econômicos, um bom exemplo é o licenciamento da tecnologia.
Dada a finalidade descrita acima, era de se esperar que a lei 9.279/1996 tratasse, de alguma forma, de invenções relativas a programas de computador, tendo em vista que grande parte das novas tecnologias criadas guardam relação com este tema. É neste sentido a inteligência do art. 10, V, que dispõe que:
“Art. 10. Não se considera invenção nem modelo de utilidade:
(…)
V – programas de computador em si;”
Diante do exposto acima, tal proibição parece ser contraintuitiva, pois tecnologias inovadoras, em grande parte, envolvem a implementação de sistemas computacionais. Para uma compreensão adequada, é importante esclarecer o que são os “programas de computador em si” citados e o porquê desta restrição justamente quando invenções implementadas por computador se tornavam cada vez mais frequentes.
De início, cabe-se observar que, ao se referir a um “programa de computador em si”, o legislador endereça o próprio código fonte do programa de computador, que nada mais é que a expressão de um processo ou método (isto é, uma série de etapas a serem cumpridas visando atingir determinado objetivo) por meio de uma linguagem que possa ser compreendida por um computador. Sendo assim, por se tratar de mera expressão de um processo que ocorre no mundo real ou virtual, a literalidade do código fonte não é considerada invenção e, portanto, não pode ser protegida por meio de uma patente. Entretanto, tal fato não implica que o regime de propriedade intelectual brasileiro não garanta a proteção de um ativo de tamanha importância.
A restrição estabelecida no art. 10, V, apenas delimita qual é o regime apropriado para proteção de cada um dos elementos envolvidos: o código fonte será protegido de acordo com o disposto na lei 9.609/1998 (“Lei do Software”), um regime jurídico especial complementado pela legislação geral de direitos autorais, enquanto o processo implementado pelo computador ao seguir os comandos dados pelo código fonte será protegido por meio de uma patente, como disposto na já citada lei 9.279/1996.
Para uma melhor compreensão, é válido pensar em uma situação hipotética em que uma montadora de automóveis desenvolve um sistema ABS inovador, capaz de prevenir que os freios travem e ainda reduzir o espaço de frenagem, se comparado com os sistemas ABS do mercado. Esse processo poderia envolver, por exemplo, as etapas de medir continuamente a velocidade das quatro rodas de um veículo e a velocidade do veículo, comparar as velocidades das quatro rodas com a velocidade do veículo, determinar se a diferença entre as velocidades de cada roda e a velocidade do veículo ultrapassou um limite superior e, se ultrapassado, aliviar a pressão da pinça de freio no disco da roda em que a diferença foi ultrapassada até que a velocidade da roda seja retomada, e repetir o processo até que o veículo pare com segurança.
As etapas acima resultam em uma solução técnica de um problema técnico, o travamento das rodas sob a aplicação de uma força excessiva de frenagem, por meio de um conjunto de etapas cujo conteúdo, para fins hipotéticos, não possui precedente na técnica. Além disso, a inovação é oriunda de um aprimoramento nas etapas do processo de frenagem, ao se comparar com processos convencionais, e não de um código mais bem escrito, que demanda menor capacidade de processamento ou roda mais rapidamente. Assim sendo, essas etapas poderiam ser protegidas por meio de uma patente. Além disso, o sistema que utiliza as etapas acima, isso é, os sensores, unidade de controle eletrônico, conjunto de freios etc. também pode ser protegido por uma patente, caso também sejam inovadores.
Por outro lado, o código fonte que rege a unidade de controle eletrônico ligada aos sensores de velocidade das rodas e ao sensor de velocidade de veículo não é patenteável. Por ser uma mera expressão de um processo que ocorre no mundo real e virtual, o código fonte ou programa de computador em si será protegido de acordo com o disposto na Lei de Software, que estabelece um regime de proteção distinto daquele visto na Lei da Propriedade Industrial.
Em um outro cenário, caso esse sistema ABS hipotético já estivesse presente no mercado e fosse desenvolvido um código mais eficiente (reduzindo o custo de processamento, por exemplo) que implementasse as mesmas etapas do sistema ABS descrito acima, não caberia a proteção por patente, uma vez que não há avanço na técnica. Nessa situação, caberia ao desenvolvedor obter um registro de seu software junto ao Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), por meio do regramento disposto na Lei do Software, posto que a alteração foi feita apenas no programa de computador em si, ou seja, em seu código fonte.
Diante da exposição acima, é notório que, ao contrário do que se poderia pensar em uma primeira leitura do Art. 10, inciso V, a proteção de softwares é plenamente amparada pelo direito de propriedade intelectual brasileiro. Mais que isso, existe a proteção em duas frentes: para o programador que desenvolve um código otimizado, por meio do registro de software, e para o inventor que resolve um problema técnico, por meio de uma patente.
Alguém poderia se perguntar, no entanto, se as leis citadas de fato protegem o inventor e o programador, considerando que foram implementadas nos anos 90 e de lá para cá o avanço na área foi extremamente significativo e ininterrupto. Não há dúvida de que o INPI tem em suas mãos o grande desafio de manter atualizadas suas diretrizes referentes a estas tecnologias.
Nesse sentido, destaca-se a realização de uma consulta pública, entre agosto e outubro de 2020, convocando a participação da sociedade na elaboração de novas diretrizes de exame para invenções implementadas por computador, cuja minuta já está disponível ao público. O objetivo desta resolução é a reformulação das diretrizes de exame de invenções implementadas por computador, atualizando os procedimentos a serem tomados pelos examinadores à rápida e constante evolução deste campo tecnológico, além de melhor organizar e definir regras já presentes nas atuais diretrizes, em vigor desde 2016. Embora cada vez mais presentes em invenções, temas específicos referentes a novas tecnologias, como, por exemplo Internet of Things e inteligência artificial, foram mencionados de forma muito breve, levando a crer que serão objeto de diretrizes específicas no futuro.
Esta iniciativa demonstra um inegável esforço do INPI em se adaptar aos novos tempos e fomentar a inovação no país, por meio de um sistema de patentes adaptado aos avanços tecnológicos. É notável que acompanhar a constante evolução da tecnologia será desafiador para o INPI, que precisará trabalhar cada vez mais para se adequar às novas demandas surgidas pela ascensão de novas tecnologias. No entanto, este esforço é necessário para que o sistema de patentes brasileiro atinja seu principal objetivo – de fomentar a inovação – por meio de um regramento transparente, eficiente, atualizado e que garanta segurança jurídica aos inventores e incentivo para o desenvolvimento do nosso sistema de propriedade intelectual.