Luiz Guilherme Veiga Valente
Instrumentos servem tanto para garantir o sigilo de novas criações industriais, como para viabilizar sua circulação
Os contratos de transferência de tecnologia apresentam crescente relevância na atual sociedade da informação. Isso porque tais instrumentos servem tanto para garantir o sigilo de novas criações industriais, como para viabilizar sua circulação, possibilitando, dessa forma, a inovação. Por outro lado, tais contratos são também uma forma de se recuperarem os custos incorridos em pesquisa e desenvolvimento. Devido a essas funções e ao seu papel na dinâmica econômica mundial, os contratos de transferência de tecnologia são, em geral, internacionais, envolvendo partes sediadas em países distintos.
Justamente pela importância que têm para o desenvolvimento tecnológico e econômico, o art. 211 da Lei de Propriedade Industrial (Lei n° 9.279/1996) exige o registro perante o INPI para que estes contratos tenham validade perante terceiros. Da mesma forma, tanto a remessa de pagamentos para o exterior, a título de royalties (artigos 1° e 3° do Anexo III da Resolução BACEN no 3.844/2010), quanto a dedutibilidade desses pagamentos para fins de imposto de renda (§ 3º do art. 365 do Dec. 9.580/2018) dependem do registro do contrato perante o INPI.
Desse modo, a legislação possibilitou ao INPI controlar os termos e condições ajustados entre as partes, na medida em que a autarquia poderia se recusar a registrar ou averbar contratos que não se coadunassem com as políticas industriais em vigor (ainda que a legalidade dessa atribuição seja hoje questionada, conforme veremos adiante).
Mas afinal, o que são contratos de transferência de tecnologia?
De acordo com a Instrução Normativa n° 16/2013 do INPI, são aqueles que envolvem a licença de direitos de propriedade industrial (exploração de patentes, exploração de desenho industrial ou uso de marcas), os de aquisição de conhecimentos tecnológicos (fornecimento de tecnologia e de prestação de serviços de assistência técnica e científica), os de franquia e os de licença compulsória para exploração de patente.
Adicionalmente, a definição legal compreende também os contratos de cessão de direitos de propriedade industrial (exploração de patentes, exploração de desenho industrial ou uso de marcas), quando o titular desse direito for domiciliado no exterior, conforme disposto no artigo 3° da Instrução. Em síntese, trata-se de todos os contratos que envolvam a cessão ou licenciamento de propriedade industrial, seja ela passível de proteção por um monopólio temporário (patentes, desenhos industriais e marcas), ou não (como no caso dos segredos industriais e know-how).
Como já adiantado, esses contratos têm forte impacto nas relações comerciais internacionais. Isso porque a produção tecnológica apresenta estreita relação com o poder econômico, não apenas no que se refere à sua concentração, como também no tocante às relações comerciais entre os países.
Nesse sentido, a tecnologia passou a constituir fator mais importante que o acúmulo de capitais para o aumento da produtividade empresarial. Tal fato se coaduna com a teoria da destruição criativa de Schumpeter,[1] segundo a qual a concorrência surge de novas ideias ou práticas, resultando num constante processo de transformação que leva ao progresso. Nesse contexto, deter conhecimento passa a ser uma vantagem competitiva, influenciando na concentração de poder de mercado.
Na dinâmica internacional, o problema se nota justamente na assimetria observada entre os países em desenvolvimento e o dito primeiro mundo, na medida em que aqueles, em geral, contam com uma defasagem na sua base tecnológica, relegando-os à condição desvantajosa de exportadores de commodities.
Nesse cenário, os contratos de transferência de tecnologia apresentam relevante destaque, uma vez que serão a base do desenvolvimento tecnológico no chamado terceiro mundo, seja ao dar as condições necessárias para a industrialização desses países, seja por possibilitar, em alguns casos, que a inovação científica neles se produzida. Isso porque, devido à defasagem mencionada, o desenvolvimento tecnológico nesses países está principalmente baseado no acréscimo a tecnologias já existentes, importadas das nações mais evoluídas.
Há que se notar, porém, que a transferência de tecnologia somente trará efeitos positivos para os países em desenvolvimento, seja na sua melhoria de sua situação na divisão internacional do trabalho, seja na desconcentração do poder econômico, se ela possibilitar, no cenário local: (i) a disseminação dessa tecnologia; e (ii) o estímulo à inovação. Sem inovação própria, os países em desenvolvimento estarão eternamente dependentes da tecnologia produzida no dito primeiro mundo. Por outro lado, a concentração da tecnologia nas mãos de poucos agentes pode constituir uma barreira à entrada de novos agentes nos mercados em que aplicada.
Importante analisar os diferentes efeitos que podem resultar da transferência por meio de cessão/licenciamento de patentes e da cessão/licenciamento de know-how. Nesse segundo caso, o caráter de segredo da tecnologia envolvida inviabiliza seu aproveitamento pela sociedade como um todo.
As patentes, por outro lado, vistas superficialmente, parecem instrumento mais favorável à disseminação da tecnologia e a possibilidade de seu desenvolvimento local, na medida em que, expirado o prazo previsto, acaba o monopólio legal, caindo a tecnologia em domínio público. Porém, não podemos ignorar que, na maior parte das vezes, apenas a tecnologia descrita na patente não é suficiente para sua própria aplicação em processo industrial, dependendo de uma série de conhecimentos, know-how e técnicas, não patenteáveis, que não necessariamente serão acessíveis aos países em desenvolvimento.
Fala-se, portanto, na importância reduzida do sistema de privilégios industriais (know-how e patentes) como modo de transferência de tecnologia. Inicialmente, a proteção da propriedade industrial visava a incentivar a atividade inventiva em prol da coletividade, que dela faria uso; contudo, na medida em que a atividade empresarial apropriou-se da atividade inventiva, o objetivo passou a ser a garantia da amortização dos investimentos, o que acaba redundando na consolidação do poder econômico.
Como solução, Comparato[2] aponta a necessidade de a máxima difusão tecnológica ser princípio cardeal da política econômica dos países em desenvolvimento, de modo a criar obstáculos ao processo de natural concentração de poder econômico pelo monopólio da experiência técnica acumulada. No Brasil, o INPI em diversos momentos foi utilizado como instrumento das políticas industriais e econômicas vigentes.
Durante a década de 1970, a autarquia se coadunou com a lógica de substituição de importações, aquisição do pleno controle sobre a tecnologia transferida, por parte do cessionário, e regulação das remessas ao exterior de royalties e remunerações por fornecimento de tecnologia.
Assim, os diplomas legais então em vigor atribuíam ao INPI a competência de “acelerar e regular a transferência de tecnologia e de estabelecer melhores condições de negociação e utilização de patentes”, o que significava a possibilidade de se fazer análise de mérito dos contratos (os quais, como já vimos, necessitam ser averbados/registrados perante a autarquia para fins de oponibilidade contra terceiros, dedutibilidade fiscal e possibilidade de remessa de pagamento ao exterior), mesmo no que diz respeito a questões concorrenciais.
Com base nessas prerrogativas e finalidades, o INPI impunha restrições a certas cláusulas dos contratos. Em primeiro lugar, a autarquia vedava o pagamento de royalties entre filial ou subsidiária brasileira de empresa estrangeira e sua sede no exterior.
Com a revogação de tal vedação, na década de 1990, o órgão passou a entender que o limite da remessa seria o mesmo de dedutibilidade dos royalties (5% sobre as vendas, conforme a natureza da atividade), posteriormente aplicando tal limite também para contratos celebrados por empresas sem qualquer vinculação entre si. Da mesma forma, com base na Lei nº 4.131/1962, que regulava a dedutibilidade, o INPI aceitava o prazo máximo de 5 anos para os contratos de transferência, renováveis por igual período.
Em segundo lugar, o INPI vedava contratos de transferência de tecnologia na forma de licenças, aceitando apenas cessões definitivas. Tal vedação, com claro objetivo ideológico de proteção da indústria nacional e disseminação interna do conhecimento, gerou fortes debates.
De um lado, defendeu-se que, no caso de transferência de tecnologia protegida por direitos de propriedade industrial, tais conhecimentos seriam amparados por direito real de propriedade, podendo seu titular dispor deles na forma como bem entendesse, fosse licença ou cessão[3]. Já no caso do know-how, a questão torna-se mais delicada, uma vez que este não haveria direito real. De outro lado, alegou-se que o know-how poderia ser considerado como objeto de posse. Assim, seu possuidor teria o direito de dispor de sua tecnologia como bem entendesse, podendo, inclusive, licenciá-lo[4].
Com o advento da década de 1990 e a consequente institucionalização de políticas neoliberalizantes no Brasil, houve reformas legais (culminando na LPI de 1996) no sentido de tirar o INPI a competência de proceder à análise de mérito dos contratos de transferência, prevalecendo o princípio de livre pactuação das partes. Apesar disso, a autarquia reluta em aceitar este novo cenário, continuando a impor os requisitos apontados acima para a registro ou averbação dos contratos, no que pesem decisões judiciais que acusem sua ingerência nesses assuntos (a exemplo do Processo nº 2007.51.01.800906-6, do TRF 2, Relator Messod Azulay Neto).
No cenário internacional, por sua vez, os países em desenvolvimento pressionaram, durante a década de 70, a celebração de um Código de Conduta Internacional sobre Transferência de Tecnologia, que visava a garantir a disseminação tecnológica, ao impedir práticas comerciais restritivas nos contratos de transferência[5].
O Código, porém, empacou diante da incompatibilidade entre primeiro e terceiro mundos quanto ao que deveria ser tutelado (apenas a concorrência ou interesses nacionais). Durante as décadas de 80 e 90, os países desenvolvidos conseguiram impor como moeda de troca para a transferência o respeito a padrões mínimos da propriedade industrial e a liberalização do comércio. A ênfase, portanto, migrou do interesse da parte mais fraca para modelo baseado em mercado aberto.
O Código deu lugar ao Acordo TRIPS, o qual: (i) não prevê obrigações e responsabilidades dos países no que diz respeito à solução de diferenças nas transações de transferência de tecnologia; mas (ii) admite a condenação de práticas, em sede de transferência de tecnologia, que se mostrem, no caso concreto, anticompetitivas; e (iii) autoriza os países a estabelecerem medidas para evitar práticas que afetem adversamente a transferência de tecnologia, ou práticas de licenciamento que consistam em abuso de direito de propriedade intelectual e que tenham efeito adverso à concorrência.
Como visto, os contratos de transferência de tecnologia envolvem uma ampla gama de negócios jurídicos que estão intimamente ligados ao desenvolvimento econômico e à inovação. Sendo assim, o legislador brasileiro previu mecanismos que tornassem praticamente obrigatórios o registro ou averbação desses contratos perante o INPI.
Com base nisso, a autarquia utiliza-se dessa prerrogativa para limitar os termos acertados nesses dispositivos, visando a promover o desenvolvimento industrial e científico brasileiro, ainda que a jurisprudência tenha passado a reconhecer a incompetência do órgão para tanto. No plano internacional, por sua vez, observam-se interesses contrapostos dos países desenvolvidos e em desenvolvimento na elaboração de tratados sobre a matéria: enquanto aqueles estão mais preocupados com a garantia da livre concorrência, estes buscam uma maneira de fomentar seu progresso tecnológico.
Em síntese, esse embate ilustra como os contratos de transferência de tecnologia são um poderoso instrumento, podendo ser voltados tanto para promover como para diluir a concentração econômica e, consequentemente, o desenvolvimento científico e social.
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[1] SCHUMPETER, Joseph A. Capitalismo, Socialismo e Democracia. Rio de Janeiro: Zahar, 1984
[2] COMPARATO, Fábio Konder. A transferência empresarial de tecnologia. In Coleção Cadernos do CEDEC, n° 4, 1984.
[3] Cabe lembrar que estas teorias não são exatamente apropriadas, uma vez que há muito a doutrina rejeita caracterizar a propriedade intelectual como propriedade no sentido clássico da palavra.
[4] De qualquer forma, vale mencionar que existem algumas cláusulas que podem resguardar o proprietário da tecnologia fornecida, tais como: (i) cláusula dispondo sobre a indisponibilidade da tecnologia fornecida pelo contrato, a qual obriga o adquirente da tecnologia a não repassá-la para terceiros; e (ii) cláusula da incomunicabilidade, por meio da qual os aspectos sigilosos da tecnologia são preservados durante o prazo contratual e por um período razoável após seu término.
[5] Ex: a venda casada de outras tecnologias e bens não relacionados aos comercializados, a fixação de preço de venda do produto fabricado por meio da tecnologia ou a obrigação de reverter ao fornecedor melhorias desenvolvidas na tecnologia transferida