Abuso no exercício dos direitos de propriedade intelectual e repressão às infrações contra a ordem econômica: As contribuições do caso ANFAPE e do Acordo TRIPS.
Sumário: A partir da análise do CASO ANFAPE e das cláusulas gerais de exceção do acordo TRIPS da OMC, o presente artigo introduz o escopo dos direitos de propriedade oriundos de desenhos industriais registrados, bem como a noção de abuso de direito de propriedade intelectual.
Palavras chave: Abuso de direito. Direitos de propriedade intelectual. Desenhos industriais. Acordo TRIPS. Cláusulas gerais de exceção. CADE. Caso ANFAPE.
Abstract: Taking as a parameter the teachings drawn from the ANFAPE Case and the normative content of the general exception clauses of the WTO TRIPS Agreement, this article introduces the notion of abuse of intellectual property rights and the scope of protection granted to rights holders by proprietary industrial designs.
Keywords: Abuse of rights. Intellectual property rights. Industrial designs. TRIPS Agreement. General exception clauses. CADE. ANFAPE case.
Introdução
O conhecimento[1] é um bem público, no sentido econômico do termo, porquanto pode ser utilizado, simultaneamente, por um número infinito de indivíduos e instituições. Diferentemente dos bens privados – bens tangíveis em geral-, o uso dos conhecimentos por um indivíduo não impõe qualquer restrição sobre a liberdade de terceiros de usufruí-los simultaneamente.[2] Em outras palavras, o conhecimento não está sujeito a uma tragédia dos recursos comuns (i.e. exaustão dos recursos até sua extinção). Em verdade, o uso simultâneo dos conhecimentos por inúmeros indivíduos impulsiona a geração de novos conhecimentos, uma vez que cada indivíduo é dotado de capacidades intelectuais que lhe são próprias.
Basicamente em todos os setores econômicos, o fortalecimento da livre concorrência mediante o desenvolvimento de novos produtos e processos não depende exclusivamente do brilhantismo intelectual dos criadores e de investimentos maciços em atividades criativas e inventivas. Isso porque novos conhecimentos e seus produtos são gerados a partir da aplicação de conhecimentos anteriores (Scotchmer 1991). Ou seja, a geração de novos conhecimentos é um processo cumulativo. É em sintonia com esse entendimento que Isaac Newton diz, em carta escrita em 1676, endereçada a Robert Hooke, que “se pude ver mais longe, foi por estar sobre os ombros de gigantes.”
Apesar do papel inconteste desempenhado pelo acesso facilitado a insumos intelectuais para o fortalecimento da livre concorrência, é igualmente sabido que o acesso ilimitado aos bens intelectuais pode igualmente gerar malefícios à livre concorrência e à livre iniciativa. Isso porque, em regra, o setor privado não terá incentivos para investir recursos escassos no desenvolvimento de produtos e processos demandados pela sociedade, se não detiver os meios legais para recuperar os investimentos incorridos e auferir recursos para a manutenção de suas atividades. Com vistas a sanar esta falha de mercado, os Direitos de Propriedade Intelectual (DPIs) figuram como o principal mecanismo de proteção de bens intangíveis da atualidade.[3] De modo artificial, os DPIs transformam, por um período de tempo limitado, bens públicos em bens privados, e, portanto, escassos, ao conferir aos seus titulares o direito de excluir terceiros não-autorizados da fruição dos objetos protegidos em diversos contextos. Aliás, este amplo direito de exclusão de terceiros não-autorizados é o atributo característico dos DPIs (Lametti 2003:335), porquanto permite que seus titulares determinem, com exclusividade, a agenda de aplicações dos objetos protegidos, podendo, assim, maximizar seus benefícios econômicos (Katz 2008: 34-35).
Uma das grandes debilidades dos DPIs é que o referido direito de exclusão por eles conferido aos seus titulares parece lhes garantir um direito absoluto, nos moldes traçados por Blackstone, no séc. XIX: propriedade é “that sole and despotic dominion which one man claims and exercises over the external things of the world, in total exclusion of the right of any other individual in the universe” (Blackstone 1825: 2).
À primeira vista, o pleno exercício do direito de exclusão conferido pelos DPIs pode, com freqüência, caracterizar uma ou mais infrações à ordem econômica brasileira, ao produzir, dentre outros efeitos: a restrição da livre concorrência ou da livre iniciativa em certos mercados relevantes de bens intangíveis, bem como a dominação de certos mercados relevantes de bens ou serviços pelos titulares de DPIs (art. 20, I-II, Lei 8.884/94). Os referidos efeitos surgem, fundamentalmente, nos casos de bens intangíveis únicos altamente valorizados pela sociedade por não disporem de substitutos no mercado (Dreyfuss 2005). A título de exemplo pode-se mencionar um gene único patenteado, que configura uma “essential facility” para o desenvolvimento de um sem número de produtos e tecnologias.
Tal construção simplista não se coaduna com as normas da Constituição Federal de 1988 (CF/88) tampouco com a própria lógica dos DPIs. No que tange à lógica que permeia os regimes de proteção da propriedade intelectual, estes regimes foram concebidos exatamente para restringir, artificial e temporariamente, a livre disseminação de bens intangíveis protegidos, a fim de viabilizar a recuperação dos investimentos por parte de seus titulares, mediante o controle do mercado para os bens que incorporem os objetos protegidos (Machlup e Penrose 1950: 12). Ou seja, a ferramenta central dos DPIs para atingir sua meta de promoção da inovação e da criatividade é a restrição temporária da concorrência. No que se refere à ordem constitucional econômica brasileira, ela está calcada sobre, dentre outros princípios, a promoção da livre concorrência e a proteção da propriedade privada, o que inclui a propriedade intelectual (art. 170, II e IV, c/c art. 5º, XXVII e XXIX). Cabe, portanto, ao intérprete harmonizar a promoção da livre concorrência com a proteção da propriedade intelectual, a fim de garantir eficácia tanto aos dispositivos da Lei 8884/94 quanto aos dispositivos das normas protetoras da propriedade intelectual (e.g. a Lei da Propriedade Industrial – LPI – Lei 9279/96). Ainda que potencialmente conflitantes, os referidos princípios constitucionais da ordem econômica são hábeis a indicar que nem todo exercício de um DPI, que garanta aos seus titulares a dominação de certo mercado e/ou produza o efeito de restringir a livre concorrência em um determinado mercado, caracteriza automaticamente uma infração à ordem econômica. Mas, então, em que condições o exercício dos DPIs configura uma infração à ordem econômica e, portanto, demanda uma intervenção antitruste?
Em 2008, a Secretaria de Direito Econômico (SDE) procurou responder a esta pergunta. No ano anterior, a Associação Nacional dos Fabricantes de Autopeças (ANFAPE) protocolou perante a SDE uma representação contra as montadoras Volkswagen, Fiat e Ford, pela suposta prática de condutas infratoras da ordem econômica brasileira, no mercado de autopeças de reposição, mediante o suposto exercício abusivo dos direitos de exclusivo conferidos por seus desenhos industriais registrados perante o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI). Antes de tratarmos do entendimento adotado pela SDE sobre em que condições o exercício dos DPIs caracteriza uma infração à ordem econômica, são válidos alguns esclarecimentos preliminares: Desenho industrial é definido pelo art. 95 da LPI como “a forma plástica ornamental de um objeto ou o conjunto ornamental de linhas e cores que possa ser aplicado a um produto, proporcionando resultado visual novo e original na sua configuração externa e que possa servir de tipo de fabricação industrial.”
Existem duas categorias de produtos, cuja aparência exterior está sujeita à proteção por meio de registro de desenho industrial, concedido pelo INPI: os produtos unitários (one-unit products) e os produtos complexos. À primeira categoria pertencem aqueles produtos que se danificados, não podem ser reparados, bem como os produtos cujos preços não justificam seu reparo. Em caso de dano a um produto unitário, a única alternativa disponível ao consumidor é adquirir um novo bem, idêntico ao danificado, ou adquirir outro bem, pertencente à mesma categoria do bem danificado. Cristais e vasos são bons exemplos de produtos unitários. À categoria dos produtos complexos pertencem aqueles produtos cujo exterior é formado por diversos componentes; em caso de dano, as partes prejudicadas destes bens podem ser facilmente substituídas por outras idênticas, de maneira a recuperar sua aparência original. Automóveis, motocicletas, relógios, aparelhos domésticos são exemplos de produtos complexos (Commission of the European Communities 2004b, 5).
No contexto brasileiro, os desenhos industriais tornaram-se uma fonte de problemas de natureza concorrencial, em função da LPI não indicar, de modo inequívoco, se os titulares de desenhos industriais registrados aplicáveis a produtos complexos têm o direito de controlar tanto o mercado primário destes bens (mercado de produtos novos que incorporam os desenhos protegidos) quanto do mercado secundário (mercado de peças sobressalentes). Peças sobressalentes ou “must-match” são peças de reposição visualmente idênticas àquelas que compõem o exterior de produtos complexos, e.g., pára-lamas, pára-choques de automóveis. Haja vista que o reparo de produtos complexos apenas pode ser realizado com peças “must-match”, se o titular de um desenho industrial aplicável a um produto complexo tiver o controle dos mercados primário e secundário, ele será a única fonte provedora de peças sobressalentes para o produto que incorpora seu desenho, podendo, então, aproveitar sua posição monopólica para fixar seus preços em níveis excessivos.
No âmbito da averiguação preliminar instaurada pela SDE em virtude da Representação encaminhada pela ANFAPE em 2007, a SDE entendeu que somente haveria espaço para uma intervenção antitruste se as montadoras houvessem abusado “dos procedimentos de registro dos direitos [de propriedade intelectual]…. Em outras palavras, quando um agente econômico tenta registrar ou estender seu registro quando sabidamente não tem direito para tanto ….” (SDE 2008: 2). Para se determinar quais eram os direitos conferidos aos titulares de desenhos industriais e se houve algum abuso perpetrado pelas montadoras, a SDE limitou-se a identificar os direitos conferidos pela LPI aos titulares de desenhos industriais registrados, e a verificar se havia alguma exceção aos direitos conferidos que impediria o exercício dos direitos garantidos, no mercado secundário de peças de reposição. Segundo se infere do entendimento da SDE, se os limites fixados pelas exceções previstas na LPI forem observados, é legítimo o exercício dos DPIs por seus titulares, ainda que o exercício produza os efeitos indicados nos incisos I e II do art. 20 da Lei 8884/94. Como não havia qualquer restrição explícita ao exercício dos direitos conferidos pelos registros de desenhos industriais no mercado secundário de peças de reposição, a SDE concluiu que não havia justificativa para uma intervenção antitruste.
O entendimento adotado pela SDE no caso ANFAPE é legalmente insustentável porquanto negligencia os limites tácitos ao exercício dos DPIs, previstos no Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (Acordo TRIPS, na sigla em inglês), da Organização Mundial do Comércio (OMC)[4], bem como em outras normas que integram o ordenamento nacional. Em grande medida, estes limites tácitos ao exercício dos DPIs foram reconhecidos pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), na decisão de dezembro de 2010 que ordenou que a SDE instaure um processo administrativo para apurar se as montadoras Volkswagen, Fiat e Ford praticaram uma “infração à ordem econômica, qual seja, abuso de posição dominante com vistas a dificultar ou impedir a atuação de concorrentes”, no setor de autopeças de reposição.
O presente artigo se propõe a tratar dos limites tácitos ao exercício dos direitos de exclusivo conferidos pelos desenhos industriais, decorrentes do art. 26(2) do Acordo TRIPS, cuja existência foi confirmada pela referida decisão do CADE, de dezembro de 2010. A explicitação dos limites tácitos dos direitos conferidos pelos desenhos industriais registrados serve igualmente de guia para a identificação dos limites tácitos aos demais ramos do direito da propriedade intelectual (e.g. marcas, patentes, direitos autorais). A identificação desses limites é fundamental para a solução de litígios de natureza concorrencial envolvendo DPIs, porquanto o exercício dos direitos de exclusivo fora dos limites tácitos fixados é pressuposto legal para a caracterização de uma conduta como infratora à ordem econômica.
- Os limites implícitos aos Direitos de Propriedade Intelectual
A confirmação de que os DPIs estão sujeitos a limites tácitos decorre do disposto nas chamadas cláusulas gerais de exceção do Acordo TRIPS, condensadas nos arts. 13, 17, 26(2) e 30. Essas cláusulas gerais de exceção muito se assemelham em termos de estrutura, substância e função: elas disciplinam o espaço oferecido aos Membros da OMC para a adoção de exceções, respectivamente, aos direitos autorais e aos direitos conferidos por marcas, desenhos industriais e patentes. Ou seja, elas indicam quais são as exigências que os Membros da OMC devem observar ao estabelecer exceções aos DPIs.
Quadro 1: As cláusulas gerais de exceção do Acordo TRIPS
Matéria | 1a condição | 2a condição | 3a condição |
Direito Autoral (art. 13, TRIPS) | “Os Membros restringirão as limitações ou exceções aos direitos exclusivos a determinados casos especiais” | “que não conflitem com a exploração normal da obra” e que | “não prejudiquem injustificavelmente os interesses legítimos do titular do direito.” |
Marca Comercial (art. 17) | “Os Membros poderão estabelecer exceções limitadas aos direitos conferidos para uma marca” | Não há um passo equivalente ao “2º passo” presente nos demais testes. | “desde que tais exceções levem em conta os legítimos interesses do titular da marca e de terceiros.” |
Desenho Industrial (art. 26(2)) | Os Membros poderão estabelecer exceções limitadas à proteção de desenhos industriais | desde que tais exceções não conflitem de forma não razoável com a exploração normal de desenhos industriais protegidos e | não prejudiquem de forma não razoável os legítimos interesses do titular dos desenhos protegidos, levando em conta os legítimos interesse de terceiros. |
Patente (art. 30) | “Os Membros poderão conceder exceções limitadas aos direitos exclusivos conferidos pela patente”
|
“desde que elas não conflitem de forma não razoável com sua exploração normal” e | “não prejudiquem de forma não razoável os interesses legítimos de seu titular, levando em conta os interesses legítimos de terceiros.” |
Da leitura do texto destes dispositivos, em especial da letra da segunda condição fixadas por cada um deles, é possível se concluir que os titulares de DPIs têm legitimidade para controlar tão-somente as formas de exploração normal dos bens intangíveis protegidos. A contrario sensu, as formas de exploração anormal desses bens estão fora do escopo dos direitos conferidos e, portanto, não se submetem ao controle dos titulares de DPIs, ainda que, no ordenamento jurídico interno, inexista uma exceção que explicitamente exclua as formas de exploração anormal do escopo dos direitos de exclusivo conferidos.[5]
Quando os titulares de DPIs procuram controlar, mediante o exercício de seus direitos de exclusivo, as formas de exploração anormal dos bens protegidos, resta configurado um abuso de direito, o qual é definido pelo art. 187 do Código Civil (Lei 10.406/2002) como o exercício de um direito que “excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.”
A máxima latina summun jus summa injuria bem sumariza o entendimento de que não há direitos absolutos, e que todos direitos estão sujeitos a limites explícitos e tácitos. Todo e qualquer direito tem como limites sua função social e os direitos de terceiros; uma vez ultrapassados estes limites, o exercício de um direito válido transmuta-se em um abuso de direito, o qual produzirá efeitos sociais deletérios não-amparados pelo direito. Nesse sentido, na seara dos direitos humanos, o art. 32(2) da Convenção Interamericana de Direitos Humanos reconhece que “[l]os derechos de cada persona están limitados por los derechos de los demás, por la seguridad de todos y por las justas exigencias del bien común, en una sociedad democrática” (Byers 2002). A doutrina do abuso de direito tem a função de estabelecer limites ao exercício dos direitos. Ela é especialmente útil para determinar os limites daqueles direitos cujo escopo não é determinado com precisão, os quais, quando exercidos, podem afetar a realização de outros direitos (García Amador 1961: 57). Esta doutrina ganha importância no contexto atual de rápida expansão do ordenamento jurídico, que passa a contar, com freqüência, com normas em permanente tensão: e.g. as normas de proteção da propriedade intelectual e as de defesa da concorrência. Com o fito de conferir coerência à ordem jurídica interna, em termos concretos, a doutrina do abuso proíbe a prática das seguintes condutas:
- Exercício arbitrário de um direito, de modo a prejudicar os interesses de terceiros. Todo direito foi concebido para a realização de uma finalidade específica, a qual pode ser chamada de função social, pois ainda que o direito tutele imediatamente interesses privados, seu fim último é social. Os direitos devem ser exercidos com o propósito de realizar formal e materialmente os interesses legítimos por ele albergados (Cheng 1953: 122). O exercício arbitrário de um direito se afasta da efetivação de sua finalidade legítima. Os prejuízos sofridos por terceiros em função do exercício arbitrário de um direito decorrem da não-efetivação de sua função social (Kiss 2009: para. 6).
- Exercício de um direito para mascarar um ato ilícito (Iluyomade 1975: 82).
- Exercício de um poder discricionário para um fim diverso do autorizado (desvio de poder) (Taylor 1972-1973: 341-342; Kiss 2009: para. 5).
- Exercício por uma pessoa de um direito, de maneira a interferir negativamente na capacidade de outrem de usufruir seus direitos (Cheng 1953: 130).
- Exercício não-razoável, desproporcional de um direito, no sentido de que seus efeitos antissociais superam os benefícios alcançáveis.[6] O titular de direitos sempre deve atentar para os efeitos positivos e negativos que decorrem do exercício de seus direitos, devendo abster-se de exercê-los quando os benefícios forem desproporcionais aos malefícios (International Law Commission 2006: para. 203).
Na esfera civil, a prática de um abuso de direito por si só configura um ato ilícito, o qual enseja a responsabilização civil do agente. Se o abuso de um DPI produzir ou for hábil a produzir algum dos efeitos elencados no art. 20 da Lei 8884/94, aí teremos, em acréscimo, uma infração à ordem econômica, a qual enseja, por sua vez, a aplicação das penas previstas no capítulo III, título V, do referido diploma legal.
Resta saber quais são as formas de exploração normal dos desenhos industriais, para que se identifique, por exclusão, as formas de exploração anormal e, portanto, abusivas destes bens intangíveis.
3. As formas de exploração normal dos desenhos industriais e o caso ANFAPE
A expressão “exploração normal” é ambígua e, portanto, pode apresentar uma diversidade de sentidos. Segundo seu sentido comum, o substantivo “exploração” pode ser tratado como sinônimo de utilizar algo produtivamente (Compact Oxford English Dictionary of Current English 2009). Já o adjetivo “normal” é definido como estar conforme uma norma/padrão usual, típico ou esperado (ibid.).
Sob a ótica do sentido comum atribuível aos seus termos, a expressão “exploração normal” de desenhos industriais denota o ato de fazer uso produtivo dos desenhos industriais protegidos, mediante o exercício dos meios legítimos comumente utilizados pelos titulares de direitos, com o propósito de auferir benefícios econômicos, que servem como incentivos econômicos para a realização de atividades de pesquisa e desenvolvimento (P&D). Os meios universalmente utilizados pelos titulares de desenhos industriais para explorá-los normalmente estão elencados no art. 26(1) do Acordo TRIPS, o qual dispõe: “O titular de um desenho industrial protegido terá o direito de impedir terceiros, sem sua autorização, de fazer, vender ou importar artigos que ostentem ou incorporem um desenho que constitua uma cópia, ou seja substancialmente uma cópia, do desenho protegido, quando esses atos sejam realizados com fins comerciais”. Contudo, conforme adiantado anteriormente, a leitura sistemática deste dispositivo com o disposto no art. 26(2) do TRIPS indica que há limites tácitos para o exercício dos direitos de exclusão conferidos. Consequentemente, nem todas as formas de exploração dos desenhos industriais que, prima facie, parecem estar resguardas pelos direitos de exclusivo garantidos pelo art. 26(1) do TRIPS, são normais e, portanto, legítimas. Para identificar quais são as formas de exploração normal, recorremos a um precedente jurisprudencial da OMC.
Embora o art. 26 do TRIPS nunca tenha sido interpretado pelos órgãos que compõem o Órgão de Solução de Controvérsias da Organização Mundial do Comércio (OSC),[7] seu artigo 30 já o foi. Uma vez que a redação do art. 30 muito se assemelha com o texto do art. 26 (quadro 1), as interpretações propugnadas pela OMC para o primeiro são úteis para esclarecer o sentido do segundo.
No contexto do art. 30 do TRIPS, o relatório do Grupo Especial em Canada – Pharmaceutical Patents excluiu duas formas de exploração das patentes do escopo da noção de exploração normal de patentes. Primeiramente, as formas de exploração que não são usualmente empregadas por todos ou por grande parte dos titulares de patentes, para delas extrair benefícios econômicos, não podem ser consideradas meios de exploração normal das patentes (WTO, WT/DS114/R, Report of the Panel, para. 7.55). A partir da transposição deste entendimento para o contexto do art. 26(2), pode-se concluir que não constitui um meio de exploração normal de desenhos industriais os meios de exploração pouco usuais, utilizados por um grupo limitado de titulares de direitos.
Em segundo lugar, em Canada – Pharmaceutical Patents, o Grupo Especial sublinhou que apenas devem ser incluídas no rol de formas normais de exploração das patentes aquelas cujo exercício seja “esencial para la consecución de los objetivos de la política en materia de patentes” (WTO, WT/DS114/R, Panel Report, para. 7.58). Os objetivos centrais de toda e qualquer política em matéria de patentes são a promoção da inovação e do progresso científico e tecnológico; a ampliação do acervo de conhecimentos técnicos e científicos da humanidade e a facilitação da divulgação e disseminação de novos conhecimentos técnicos e científicos (Bently, 2010: 56).
Transpondo este entendimento para o contexto do art. 26(2) do TRIPS, pode-se afirmar que tampouco devem ser considerados “meios de exploração normal” de desenhos industriais as formas de exploração que não se mostram essenciais à consecução dos objetivos fundamentais dos regimes de proteção de desenhos industriais. A função do registro de desenho industrial é conferir ao seu titular um monopólio da forma, ou seja, da aparência exterior de um produto, mas não um monopólio de produto (Ecar 2006-2007: 7). O registro de desenho industrial funciona como um estímulo à inovação por duas razões. Em primeiro lugar, por agregar valor a produtos funcionais, auxiliando-os a se diferenciar uns dos outros e a colocar os produtos que ostentam os desenhos mais valorizados pelos consumidores em uma melhor posição competitiva. Os titulares dos produtos melhor colocados no mercado terão maiores chances de recuperar seus investimentos e levantar recursos para futuros projetos. Em segundo lugar, porque a proteção legal garantida pelos registros estimula a indústria a desenvolver continuamente novos desenhos, a fim de tornar seus produtos mais atraentes ao consumidor e, portanto, mais competitivos.
O direito do desenho industrial visa a salvaguardar a livre concorrência de produtos (Ibid., p. 7). É por isso que, por exemplo, o titular de um desenho industrial aplicado a um relógio tem o direito de impedir terceiros de produzir e comercializar relógios que incorporem seu desenho, mas não o de embargar o desenvolvimento de relógios que incorporem outros desenhos (Sigmund 2005: para.1.6.1.2). A proteção do produto funcional por detrás do desenho é uma preocupação do direito das patentes, não do direito do desenho industrial (Ecar 2006-2007: 6). Enfim, o direito do desenho industrial é uma ferramenta de promoção da inovação por meio da livre concorrência; quando este ramo do direito da propriedade intelectual funciona corretamente, um produto que incorpora um desenho industrial protegido representa tão-somente uma parcela do mercado relevante, havendo, portanto, outras opções de produtos concorrentes.
Em síntese: não se deve considerar como “meios de exploração normal” de desenhos industriais as formas de exploração que não se mostram essenciais à consecução dos objetivos dos regimes de proteção dos desenhos industriais, quais sejam, agregar valor a produtos funcionais (e.g. automóveis, relógios, aparelhos domésticos, motocicletas), mediante a diferenciação dos produtos; e fomentar a criatividade mediante a recuperação dos investimentos realizados no desenvolvimento de desenhos industriais.
Igualmente não deve ser incluído no rol dos “meios de exploração normal” de desenhos industriais o exercício dos direitos de exclusivo, garantidos pelo art. 26(1) do TRIPS, em detrimento de terceiros que façam uso de desenhos protegidos para fins não-comerciais (Art. 26(1) in fine).
Finalmente, deve-se acrescentar à lista de meios anormais (e, portanto, ilegais) de exploração dos desenhos industriais aquelas formas de exploração prejudicadas pelas falhas de mercado: Segundo De Borja (2008: 507), Ginsburg (2001: 12-13) e Bently (2010: 57), quando determinada forma de exploração de um bem intangível protegido for afetada por uma falha de mercado, em função de os custos para monitorar seu exercício exceder os benefícios que os titulares de direitos podem dela extrair, os DPIs em geral não devem garantir aos seus titulares o direito de controlá-la. Consequentemente não estão incluídas nas formas de exploração normal o uso de desenhos industriais na esfera privada, em função da impossibilidade ou dificuldade de se monitorar as ações que ocorrem longe dos olhos do público.
Uma vez identificado o sentido normativo da expressão “exploração normal”, é possível se investigar se as montadoras que exercem os direitos de exclusivo conferidos pelos registros de desenhos industriais, no mercado secundário de peças de reposição, praticam ou não abusos de direito.
4. Configura um abuso de direito o exercício dos direitos conferidos por desenhos industriais no mercado secundário?
Apesar do indiscutível valor econômico do mercado secundário, os titulares de desenhos industriais não têm legitimidade para exercer seus direitos de exclusivo neste mercado por diversas razões. Primeiramente, a exploração do mercado de peças de reposição não deve ser considerado um meio normal de exploração dos desenhos industriais, pois caso fosse reconhecida a legitimidade dos titulares de desenhos industriais de controlar este mercado, a indústria automobilística seria o único setor a ganhar o controle monopólico do mercado de peças de reposição. Não é adequada uma interpretação que produza o efeito de assegurar tratamento discriminatório em favor de um setor. E mesmo no setor automobilístico brasileiro, nem todas as montadoras reivindicam o direito de controlar a fabricação e a comercialização de autopeças de reposição.
Em segundo lugar, a função dos desenhos industriais é plenamente cumprida por meio do exercício dos direitos de exclusivo no mercado primário de produtos novos, não havendo qualquer justificativa plausível para incluir em seu escopo o controle do mercado secundário (Commission of the European Communities 2004b: 47). Dados econômicos indicam que as montadoras investem o correspondente a 4.2% de seu faturamento na pesquisa e no desenvolvimento de um novo modelo de veículo (mecânica e design), mas o desenvolvimento do exterior de um novo modelo consome apenas 0.7% de seu faturamento (Ibid., p. 30). Em termos pecuniários, isso significa que entre 50 e 60 euros do preço pago pelo consumidor final de um automóvel novo de luxo são suficientes para cobrir os investimentos realizados pelas montadoras no desenvolvimento de seu exterior (carroceria, vidros, lanternas etc.). Não é preciso, portanto, assegurar tantos direitos às montadoras, para que recuperem seus investimentos em P&D (European Union 2004).
Em terceiro lugar, nos países que asseguram aos titulares de desenhos industriais o controle do mercado secundário, as montadoras utilizam os ganhos exorbitantes auferidos com a venda de autopeças de reposição para subsidiar os preços das autopeças não protegidas por DPIs (peças mecânicas, por exemplo) e, por isso, sujeitas à livre concorrência. Enfim, os lucros obtidos são utilizados para prejudicar a livre concorrência, uma vez que as indústrias independentes não dispõem da mesma ferramenta para manter seus produtos competitivos (Ecar 2009: 8).
Em quarto lugar, considerando que a vida média de um modelo de automóvel é de cinco anos e que a vida útil dos veículos de passeio é de até treze anos, se a duração da proteção outorgada aos desenhos industriais de peças de reposição for de até 25 anos – tal como previsto pelo art. 108 da LPI –, quando os desenhos destas peças caírem em domínio público, as indústrias independentes não terão incentivos econômicos para produzi-las, pois a demanda será muito limitada. Nesse contexto, em termos práticos, os direitos de exclusivo das montadoras não serão temporalmente limitados, mas eternos, no sentido de que os desenhos industriais serão conservados em domínio privado enquanto perdurar sua relevância econômica. Transformar um direito temporalmente limitado em um direito de fato de duração ilimitada ataca as fundações do direito da propriedade intelectual.
Por fim, o exercício dos direitos de exclusivo no mercado secundário chancela o enriquecimento ilícito dos titulares de desenhos a expensas dos consumidores, os quais pagam, duas ou mais vezes por um mesmo desenho: Quando o consumidor adquire um automóvel novo, o desenho industrial já desempenhou plenamente sua função, ao servir como uma ferramenta poderosa de marketing, cuja função é seduzir o consumidor a escolher um determinado veículo, dentre os disponíveis no mercado (Commission of the European Communities 2004b: 45). No momento da aquisição do automóvel, o consumidor já remunerou satisfatoriamente as montadoras pelos investimentos realizados no desenvolvimento do desenho industrial que o automóvel incorpora. Se o mercado de autopeças de reposição for controlado, com exclusividade, pelas montadoras, o consumidor pagará uma nova compensação pelo desenho industrial toda vez que adquirir uma autopeça de reposição (Commission of the European Communities 2004a: 7).
Entender que os registros de desenhos industriais permitem o controle do mercado secundário de peças sobressalentes fere a função social do direito do desenho industrial, ao “estabelecer um monopólio de produto no mercado secundário, contraditório com a natureza mesma da protecção jurídica de desenhos” (Sigmund 2005: para. 5.3): o registro de desenho industrial, quando estende proteção às peças sobressalentes, é incapaz de fomentar o desenvolvimento de novos desenhos industriais e garantir a livre concorrência, haja vista que os consumidores de peças sobressalentes não procuram diversidade, buscam apenas peças idênticas àquelas que compõem o produto complexo danificado. Assim sendo, como não há espaço para a concorrência desenvolver produtos substitutos, o titular do desenho industrial torna-se um verdadeiro monopolista no mercado secundário (Ecar 2006-2007: 7-8). Em outras palavras, o titular de desenho industrial passa a deter um monopólio de produto, que lhe garante o controle total da comercialização das peças sobressalentes para os produtos que incorporarem seu desenho industrial, e, por conseguinte, a liberdade de impor preços excessivos para seus produtos.
O entendimento de que o exercício dos direitos conferidos pelos desenhos industriais no mercado secundário configura uma forma anormal (abusiva) de exploração destes bens que, em virtude de seus efeitos anticoncorrenciais, atrai a intervenção do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, foi plenamente acolhido pelo CADE. Em 15 de dezembro de 2010, o CADE determinou, por unanimidade, que a SDE instaure um processo administrativo, a fim de apurar se as indústrias automobilística representadas (Fiat, Ford e Volkswagen) praticaram uma “infração à ordem econômica, qual seja, abuso de posição dominante com vistas a dificultar ou impedir a atuação de concorrentes (art. 20, incisos I, II e IV, e 21, incisos IV e V)”, no mercado secundário de autopeças de reposição para carroceria (Ragazzo 2010: paras. 225 e 260). O relator do caso, o conselheiro Carlos Emmanuel J. Ragazzo, entendeu que “[A] imposição dos registros de desenho industrial das Representadas diante dos FIAPs [Fabricantes Independentes de Autopeças para Automóveis] revela-se: (a) um exercício abusivo do direito de propriedade industrial em questão, na medida em que se desvirtua dos fins sócio-econômicos estabelecidos pela própria norma constitucional que ampara esse direito, que tem por objetivo ‘o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País” (art. 5º, XXIX); (b) juridicamente desproporcional, pois compromete severamente o direito à livre concorrência, o direito dos consumidores e a repressão ao abuso de poder econômico, sem contrapartidas em termos de benefícios visados pelos direitos de propriedade industrial; e (c) uma potencial infração à Lei no. 8.884/94, pois consubstancia abuso de posição dominante com o fim de impedir ou dificultar a atuação de concorrentes, com potenciais efeitos danosos à ordem econômica” (Ragazzo 2010: para. 259, item viii).
O voto do relator Ragazzo não fez qualquer menção ao art. 26(2) do TRIPS ou à expressão “exploração normal” de desenhos industriais; ainda assim, ele tacitamente acolheu o entendimento de que existem limites tácitos ao exercício dos DPIs, a saber: as formas normais de exploração dos bens intangíveis protegidos. Ou seja, os titulares de DPIs apenas estão legitimados a controlar as formas normais de exploração de seus bens. Tais limites devem ser necessariamente observados pelos titulares de DPIs, sob pena de praticarem um abuso de direito que poderá ensejar uma intervenção antitruste.
As formas de exploração normal dos desenhos protegidos não são aferíveis pela mera leitura da LPI, mas a partir de uma análise da habilidade de cada forma de exploração de verdadeiramente promover os objetivos essenciais perseguidos pelos regimes de proteção de desenhos industriais, quais sejam: agregar valor a produtos funcionais mediante sua diferenciação; e fomentar atividades criativas mediante a recuperação dos investimentos realizados no desenvolvimento de desenhos industriais. Quando as formas de exploração não forem genericamente essenciais para a promoção destes objetivos, elas são anormais e, por conseguinte, ilegítimas. É por essa razão, que são ilegítimas: i) as formas de exploração utilizadas por um grupo limitado de titulares de desenhos industriais; ii) o exercício dos direitos de exclusivo em detrimento de terceiros que façam uso de desenhos industriais para fins não-lucrativos ou na esfera privada; iii) o controle de formas de exploração que não se mostram essenciais para a recuperação dos investimentos incorridos no desenvolvimento de desenhos industriais.
5. Conclusão: A contribuição do caso ANFAPE para a solução de futuros litígios concorrenciais envolvendo DPIs
Pode-se afirmar que a grande contribuição do caso ANFAPE – mais especificamente do voto do Conselheiro Ragazzo, acolhido unanimemente por todos os conselheiros do CADE — para a solução de futuros litígios concorrenciais envolvendo DPIs é o entendimento de que os titulares de DPIs em geral apenas estão investidos no direito de controlar as formas de exploração normal dos objetos protegidos, e não toda e qualquer forma de exploração destes bens que possa lhes garantir algum benefício econômico tangível. Entender de forma diversa seria reconhecer que os DPIs são direitos absolutos, o que conflita com a necessidade, imposta pela CF/88, de que interesses legítimos em tensão devem ser reconciliados.
O entendimento de que os titulares de DPIs apenas estão investidos no direito de controlar as formas normais de exploração dos bens intangíveis protegidos constitui meio de se operacionalizar o princípio constitucional da função social da propriedade intelectual, segundo o qual, os DPIs devem ser protegidos com vistas a promover o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do Brasil (art. 5º, XXVII, XXIX c/c art. 170, III, CF/88). Em síntese, o referido entendimento harmoniza, pelo menos, três princípios constitucionais da ordem econômica ao viabilizar, simultaneamente, a proteção da propriedade intelectual e a ampliação da livre concorrência: a função social da propriedade, a livre concorrência e a defesa do consumidor (art. 170, incisos III, IV e V, CF/88).
Em termos de técnica hermenêutica, o entendimento acolhido pelo CADE a respeito do escopo e limites dos DPIs é muito mais adequado que o originariamente adotado pela SDE, no âmbito do caso ANFAPE. O primeiro teve como norte o princípio da interpretação efetiva (ut res magis valeat quam pereat), também conhecido como princípio do efeito útil (effect utile), segundo o qual o intérprete deve sempre optar pela alternativa interpretativa que garanta a harmonia e a integridade de todas as normas integrantes do ordenamento jurídico nacional (International Law Commission 1966: 221). Em sentido diverso, ao tratar da esfera sob controle exclusivo dos titulares de DPIs, a SDE afirmou que “o cumprimento da função social da propriedade [intelectual] se dá pela sua utilização econômica plena, independentemente de qualquer outro critério que não seja econômico” (SDE 2008: 53; grifamos). Não há dúvidas de que esta perspectiva é juridicamente insustentável, seja porque a função social da propriedade intelectual vai além de sua função econômica; seja porque o intérprete de qualquer norma que integra o ordenamento jurídico pátrio deve sempre optar pela alternativa interpretativa que atenda “aos fins sociais a que ela [a norma] se dirige e às exigências do bem comum” (art. 5º, Decreto-lei no. 4657/42); seja porque as normas protetoras da propriedade intelectual devem ser lidas em harmonia com as normas de hierarquia constitucional, notadamente, com os princípios que disciplinam a ordem econômica (art. 170).
Considerando que a realização destes princípios constitucionais depende, com frequência, da ampliação do acesso às diversas categorias de bens intangíveis, os DPIs devem ter seu escopo limitado na medida necessária para garantir sua observância (Drexl et al. 2005: 453-454). E para atingir este objetivo, o CADE está legitimado a impor aos titulares de DPIs medidas com o propósito de impedi-los de controlar as formas anormais de exploração dos objetos intangíveis protegidos – controle este que acarretaria a restrição indevida da livre concorrência em uma medida desnecessária para viabilizar a recuperação dos investimentos incorridos em inovação e criatividade –, com fulcro no art. 24, V, da Lei 8884/94, o qual dispõe: “Sem prejuízo das penas cominadas no artigo anterior, quando assim o exigir a gravidade dos fatos ou o interesse público geral, poderão ser impostas as seguintes penas, isolada ou cumulativamente: V – … ou qualquer outro ato ou providência necessários para a eliminação dos efeitos nocivos à ordem econômica.” Em síntese, a concepção Blackstoniana de que os direitos de propriedade em geral – inclusive os DPIs – são direitos amplos e ilimitados não tem qualquer aplicabilidade prática ao contexto brasileiro atual.
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[1] O termo “conhecimento” abrange dados, informações e conhecimentos em sentido estrito. Os elementos que compõem a noção de conhecimento foram definidos por Elinor Ostrom e Charlotte Hess (2007:8), com esteio em Machlup, da seguinte forma: “Machlup … introduced this division of data-information–knowledge, with data being raw bits of information, information being organized data in context, and knowledge being the assimilation of the information and understanding of how to use it. Knowledge … refers to all types of understanding gained through experience or study, whether indigenous, scientific, scholarly, or otherwise nonacademic.”
[2] Ostrom e Hess (2003) sustentam que o conhecimento é um bem de consumo não-rival, porquanto pode ser consumido por um número infinito de pessoas, e é um bem não-excludente, pois o processo de excluir terceiros não autorizados de sua fruição é tecnicamente impossível ou excessivamente custoso.
[3] Segundo o art. 2(viii) da Convenção que estabelece a Organização Mundial da Propriedade Intelectual, DPIs são os direitos relativos a “las obras literarias, artísticas y científicas; a las interpretaciones de los artistas intérpretes y a las ejecuciones de los artistas ejecutantes, a los fonogramas y a las emisiones de radiodifusión; a las invenciones en todos los campos de la actividad humana; a los descubrimientos científicos; a los dibujos y modelos industriales; a las marcas de fábrica, de comercio y de servicio, así como a los nombres y denominaciones comerciales; a la protección contra la competencia desleal, y todos los demás derechos relativos a la actividad intelectual en los terrenos industrial, científico, literario y artístico.”
[4] Internalizado por meio do Decreto Presidencial no. 1.355 de 30 de dezembro de 1994.
[5] Confirmando o entendimento de que as cláusulas gerais de exceção do TRIPS servem para, dentre outras coisas, identificar as esferas não-sujeitas ao controle dos titulares de DPIs, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), no âmbito do Recurso Especial no. 964404, proferido em 15 de março de 2011, entendeu que o art. 13 do TRIPS goza de aplicação direta para a solução de litígios privados na esfera doméstica. Embora este acórdão se refira apenas ao art. 13 do Acordo TRIPS, a lógica introduzida por ele se aplica a todas às demais cláusulas gerais de exceção do TRIPS.
[6] Friedmann (1963: 288) classifica o princípio do abuso de direito como um princípio de interpretação do escopo dos direitos: “This [princípio do abuso de direito] does not say anything on the specific content and extent of certain rights, such as ownership of land or territory, the use of waters, fishing and the like; it merely says that whatever these rights are, they must not be used in such a manner that its antisocial effects outweigh the legitimate interests of the owner of the right.”
[7] O OSC da OMC é formado por Grupos Especiais – uma espécie de órgão ad hoc de primeira instância -, e um Órgão de Apelação.
Autor: Dr. Edson Beas Rodrigues JR.
Artigo Publicado na Revista ABPI ; Edição 140.
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