A Classificação de Nice em dois princípios básicos do Direito de Marcas.

A Classificação de Nice em dois princípios básicos do Direito de Marcas.

Por Yuri Mhurion Antunes – Fundador da Thinker

Introdução.

O Direito de Marcas no Brasil opera através do sistema atributivo, qual seja aquele que leva em consideração o primeiro pedido de registro como o que preferencialmente tem direito à propriedade da marca. Salvo à exceção do direito de precedência — que é assunto para um artigo próprio — a marca não necessariamente pertence a quem criou primeiro, mas sim a quem buscou e conseguiu o registro em primeiro lugar.

Além disso, paira sobre o direito de marcas brasileiro o princípio da especialidade. Sua aplicação determina que a proteção do sinal marcário se restringe às atividades exercidas pelo titular da marca, que pode ser pessoa física ou jurídica. A exceção à essa regra são as marcas de alto renome, que também merece ser tratada em artigo próprio.

Pois bem, exceções à parte, um assunto importante para quem atua – ou pretende atuar – no ramo do Direito de Marcas é a eventual colidência de marcas depositadas em classes diferentes no Instituto Nacional da Propriedade Industrial.

Com esse objetivo, importa analisar a real função da Classificação Internacional de Produtos e Serviços de Nice e sua relação com dois princípios básicos do tema: o da especialidade e o da afinidade.

O Acordo de Nice e o princípio da especialidade.

O direito de exclusiva da marca é limitado às atividades exercidas pelo seu titular. Essa é a premissa básica do princípio da especialidade. Gama Cerqueira resumiu o tema ensinando que “A marca deve ser nova, diferente das existentes; mas, tratando-se de produtos ou indústrias diversas, não importa que ela seja idêntica ou semelhante a outra em uso(1).”

Isso exige, no entanto, meios pelos quais seja possível verificar se determinado sinal distintivo está disponível para ser apropriado em determinada atividade. Para tanto, INPI adota a Classificação Internacional de Produtos e Serviços de Nice, embora o Brasil não seja signatários do respectivo Acordo Internacional.(2) Na prática, essa variada disposição de classes facilita não só o exame de mérito do registro da marca, mas também as buscas de anterioridade daqueles que pretendem depositar um pedido de registro no Brasil.

Portanto, estamos falando de 45 classes divididas entre produtos e serviços, as quais são subdivididas em especificações que, por sua vez, se desdobram em diversas atividades, sendo possível delimitar com mais clareza o que tipo de serviço ou produto a marca pretende assinalar.

A adoção dessa classificação internacional pelo INPI ajuda — e muito — a instrumentalizar o princípio da especialidade das marcas, contudo, não esgota em si mesma, a aplicação do princípio.

Isso porque a adoção de uma classificação detalhada de produtos e serviços é um método eficaz de, pelo menos preliminarmente, possibilitar a verificação de colidência entre marcas idênticas ou semelhantes. A classificação pela qual a marca foi depositada é um forte indício da atividade exercida e, inclusive, é comumente arguida em processos judiciais.

Entretanto, parece razoável afirmar que a adoção da Classificação Nice pelo INPI possui um caráter fortemente indiciário sobre a atividade exercida pelo titular da marca, bem como possui um viés substancialmente administrativo. No último caso, a afirmação é justificada, inclusive, em um dos “considerandos” do Ato Normativo 150 (3), o qual tornou público a adoção da referida classificação. Nessa oportunidade, o Ato justifica a medida também na “…necessidade de imprimir maior celeridade ao exame dos pedidos de registro de marca, assim como de simplificar e modernizar os respectivos procedimentos do INPI, tornando-os mais eficientes…”.

A Lei Ordinária e o princípio da afinidade.

A Lei da Propriedade Industrial (Lei 9.279/96) possui um escopo mais abrangente ao tratar sobre o conceito de marca e o sobre os atributos que impedem um registro. Vejamos:

Art. 123. Para efeitos desta Lei, considera-se:
I – marca de produto ou serviço: aquela usada para distinguir produto ou serviço de outro idêntico, semelhante ou afim, de origem diversa;

A Lei Ordinária traz, portanto, o conceito de produto ou serviço semelhante ou afim. E essa afinidade pode, logicamente, transitar em mais de uma classe. É importante também analisar que a legislação refere como causa impeditiva do registro da marca a “reprodução ou imitação, no todo ou em parte, ainda que com acréscimo, de marca alheia registrada, para distinguir ou certificar produto ou serviço idêntico, semelhante ou afim, suscetível de causar confusão ou associação com marca alheia; (4)

Levando em conta a definição da Lei Ordinária, não é difícil perceber que uma classificação de produtos e serviços, embora suficientemente detalhada para fins administrativos, não possui efetividade para exaurir, em si mesma, eventual afinidade que produtos e serviços possam ter entre si, bem como a possibilidade, nessas circunstâncias, de uma marca causar confusão ou associação no mercado, com marca de terceiros.

A vigilância é necessária nessa hora e a oposição ao registro da marca é o instrumento capaz de, nesses casos, trazer o contexto real das atividades exercidas pelo titular da marca e pelo depositante de um pedido de registro.

A possibilidade da análise de colidência de marcas extrapolar os limites da classe em que a marca se encontra registrada é descrita no Manual de Marcas do INPI, ao tratar sobre a análise de pedidos de marca com oposição.

A busca por anterioridades num processo com oposição poderá levar em consideração colidências em classes mercadologicamente afins, com o objetivo de apurar os argumentos trazidos aos autos pela impugnante e pela oposta, principalmente nos casos de suposta infringência do inciso XIX do art. 124 da LPI.(5)

Há, portanto, uma dualidade de princípios, visto que agora transitamos do princípio da especialidade de marcas para o princípio da afinidade de marcas, tema que Denis Borges Barbosa (6) sintetizava de forma clara e objetiva.

O conflito entre a realidade do mercado relevante – dúctil, mutável e complexo – e a divisão administrativa das atividades em classes, destinadas a facilitar a simples análise de colidência e anterioridade pela administração, fica especialmente evidenciada pela questão da afinidade.

Afinidade vem a ser a eficácia da marca fora da classe à qual é designada, principalmente pela existência de um mercado relevante que se constitui, no contexto temporal e geográfico pertinente, fora das classes de registro.

O princípio da afinidade também é largamente aplicado na jurisprudência brasileira. A título de exemplo, podemos trazer um trecho do voto do Min. do Superior Tribunal de Justiça Marco Aurélio Bellizze, que, em Recurso Especial em Ação Declaratória de Nulidade de Registro de Marca, manifestou-se no seguinte sentido:

Com efeito, também esta Terceira Turma comunga do entendimento de que a distinção em classes, conquanto consista em importante indício para aplicação do princípio da especialidade, não tem caráter absoluto, devendo ceder sempre que a afinidade concreta viabilize confusão no mercado consumidor ou desvirtue os padrões concorrenciais. (7)

Conclusão.

A diversidade de atividades que englobam os produtos e serviços oferecidos na sociedade da informação é imensa. No que tange à proteção de marcas, a Classificação de Nice desempenha um importante papel tanto de caráter administrativo no processo de registro de marcas do INPI, quanto de caráter indiciário para a análise de colidência de marcas.

Entretanto, o profissional da propriedade intelectual, jamais pode deixar de analisar o contexto fático e apurar a efetiva atuação mercadológica dos titulares e/ou utentes das marcas quando diante de uma análise colidência. É no mundo real que o princípio da afinidade de marcas transita.


(1) GAMA CERQUEIRA, João da. Tratado da Propriedade Industrial, Revista dos Tribunais, 2ª edição, São Paulo, 1982, vol. 2, pág. 779.

(2) WIPO. Administered Treaties. Disponível em: https://www.wipo.int/treaties/en/ShowResults.jsp?lang=en&treaty_id=12 Acessado em 07/05/2020.

(3) Ato Normativo 150 do INPI, publicado em 09/09/1999. Disponível em: https://www.wipo.int/edocs/lexdocs/laws/pt/br/br124pt.pdf Acessado em 07/05/2020.

(4) Artigo 124, XIX da Lei 9.279/96

(5) Manual de Marcas do INPI. Exame Substantivo. Disponível em: http://manualdemarcas.inpi.gov.br/projects/manual/wiki/5%C2%B712_An%C3%A1lise_de_pedidos_com_oposi%C3%A7%C3%A3o#5122-Oposi%C3%A7%C3%A3o-com-base-em-concorr%C3%AAncia-desleal Acessado em 07/05/2020.

(6) BARBOSA, Denis Borges. A Especialidade das Marcas. Publicado em 2002. Disponível em: http://denisbarbosa.addr.com/arquivos/200/propriedade Ref.: ‘72. Doc’. Acessado em: 07/05/2020.

(7) REsp 1258662/PR, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 02/02/2016, DJe 05/02/2016.


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